sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Estão presos na cadeia e pela doença. As histórias de quem chega ao único centro hospitalar do sistema prisional. Por vezes, a última fuga do inferno





Fernando tem um parafuso do tamanho de um dedo indicador dentro dele. Há meses, agarrou num copo de água e engoliu dois parafusos, um vidro, uma colher e duas lâminas de barbear. Enroscou-se na cama quando os corpos estranhos passavam pelo esófago. Depois entrou numa ambulância. Quase todos os objectos acabaram por ser expulsos através das fezes. Quase todos, menos um prego que ainda está dentro dele, como se fosse um bibelô do estômago. Fernando gemeu de dor na casa de banho mas conseguiu o que queria: ser transferido para o hospital-prisão de Caxias.
Aos 39 anos, de dragão tatuado no peito, Fernando senta-se no corredor de azulejos e abraça as pernas pelos joelhos. Conta como um ajuste de contas de droga o levou a matar dois homens à queima-roupa. Condenado a 25 anos de prisão pelos dois homicídios, já cumpriu 12. Quando decidiu engolir os objectos impossíveis estava na ala de segurança da cadeia do Linhó, local onde na hora das visitas não há abraços nem beijos, apenas o outro do outro lado de um vidro. Mas Fernando já quase não tem visitas: só lhe resta uma tia e uma filha, de quem nem sabe a idade.
As prisões são cata-ventos de vinganças. Poisos de ajustes de contas. Lá dentro a vida pode ser de tal forma um inferno que muitos a põem em risco para pressionar uma saída – nem que seja temporária. No hospital o tempo corre mais devagar. Há menos actividades. Menos espaço. Mas também menos pressões e conflitos. Menos encomendas e perseguições. Menos dívidas, menos vinganças, menos riscos que na prisão. Há registos de fuga, mas não de homicídios. No arquivo da sala das endoscopias do São João de Deus guardam-se para memória futura imagens de quem engoliu talheres, baterias, moedas, dobradiças de portas. Histórias de quem devorou oito pilhas e por sorte não se lembrou de as comer esmagadas, seguindo o exemplo de outro recluso, que acabou com o esófago corroído por mercúrio e chumbo.
Ao lado do Fernando, batido pela luz, um homem numa cadeira de rodas fuma um cigarro infinito. Tiago, condenado por tráfico de droga, é o mais antigo doente do hospital prisional. Quando chegou vinha para ser mais um paciente temporário: tinha uma unha do pé negra e sentia dores. Cortou a unha, depois um dedo, depois outro. Dos pés, das mãos. Depois ficou sem metade das pernas, sem joelhos. Os médicos descobriram que tinha a doença de Buerger – uma obstrução das artérias associada ao hábito de fumar. O médico aconselhou-o a deixar os cigarros, mas Tiago não largou. Na sala de operações, uma vez atrás da outra, foi perdendo partes do corpo até ficar só metade. “Entrei a jogar à bola, agora saio assim”, diz a coçar a barba com os dedos carcomidos. Dia 1 de Maio sairá em liberdade condicional. Diz que é nesse dia que devíamos estar lá para saudar o seu regresso à liberdade. Em Tomar, à sua espera, terá mulher, filhos e uma casa sem grades.
Outro recluso faz de barbeiro de serviço. João está apenas de passagem pelo hospital para ser operado. No dia seguinte cumprirá 20 anos de prisão: ficam a faltar cinco para terminar a pena máxima por roubos e assaltos à mão armada. “Não, não matei ninguém”, apressa-se a dizer. Assim que recuperar da cirurgia, voltará para a cadeia de onde saiu. Com uma máquina emprestada por um guarda, vai cortando o cabelo aos outros presos. Entre um corte e outro, enquanto o próximo cliente decide que penteado quer, limpa os cabelos entalados na máquina com uma escova de dentes.
Minutos antes não largava o telefone do átrio: explicava à mulher e à cunhada que ia ser operado a um quisto mas fugiu da sala de cirurgias. “Ganhei medo quando vi as seringas.” João entrou no meio prisional aos 20 e poucos anos. Hoje tem duas filhas, mais novas que a sua ausência de liberdade. Como? “Foram feitas em saídas precárias.”
O bloco operatório O Hospital S. João de Deus é a única unidade hospitalar do sistema prisional. Em baixo, o pavilhão clínico. Ao cimo, a unidade de psiquiatria. Só em casos excepcionais – determinados pela doença física, como o do Tiago, pela doença mental ou pela velhice os doentes ficam ali internados durante anos. O hospital é, por princípio, um albergue temporário: para quem precisa de uma consulta, de uma pequena cirurgia, teve uma crise mental aguda ou corre o risco de se suicidar.
Não fossem as grades nas janelas e o bloco operatório, soturno, seria igual ao de um hospital civill. Há rádio aos berros e enfermeiras a cantar. Luzes que parecem naves especiais. Conversas de café trocadas entre anestesias. Piadas enquanto se rasga e vasculha num corpo. Numa das salas, um lençol rasgado cobre o corpo de Nuno. Do buraco sai o único órgão que interessa para a cirurgia: o pénis. Nuno tem 43 anos e vai finalmente fazer a circuncisão que devia ter feito em miúdo. O cirurgião agarra o pénis do homem com a naturalidade de quem agarra um braço e rasga-lhe o prepúcio com uma tesoura. O pénis de João – que autorizou fotografias para esta reportagem, desde que “da cintura para baixo” – vai finalmente deslizar. Nunca é tarde para se ter uma infância feliz.
Na sala ao lado, Álvaro, ainda em prisão preventiva, bem pede anestesia geral mas não convence. Ali ficará, de olhos abertos, e com a barriga ainda mais aberta. De olhos abertos, a falar sobre a vida, enquanto lhe espetam pinças, tesouras, ferros quentes para queimar coágulos e lhe retiram um pedaço de gordura do tamanho de uma febra (um linfoma).
No quadro pregado à entrada do bloco com a agenda das cirurgias o que mais se repete são as operações às hemorróidas. O cirurgião está convencido de que estão relacionadas com as práticas homossexuais desprotegidas nas cadeias. “Têm direito a preservativos, mas não pedem por vergonha. Sabem que se o fizerem estarão a admitir que vão ter relações com outros homens.” Mas entre os funcionários do hospital há quem tenha outra teoria: o ânus é o esconderijo preferido dos reclusos. É lá que se guardam objectos, dinheiro ou droga.
Na marquesa da outra sala, Pedro adormeceu profundamente. Da mão amarela, besuntada de betadine, serão precisos dois médicos para lhe retirarem uns parafusos. É a segunda visita que faz ao hospital, depois ter dado um murro na cadeia. Os parafusos envolveram-se na pele e dá dó ver escarafuncharem-lhe no interior da mão como se remexe num guisado ao lume. Nesta altura ainda não sabíamos quem era o Pedro. Sabíamos apenas que era novo, grande, bonito. Que parecia não pertencer ali. O hospital-prisional está cheio de gente assim. Como nós. Gente de ar afável, de quem não sentiríamos medo. Os homens não se vêem pelas caras. E os crimes também não.
Mais tarde, o choque de saber que Pedro asfixiou e pegou fogo à amante, de 20 e poucos anos. Foi condenado a 21 anos de prisão e, na cadeia, terminou o curso de Psicologia. Repetirá que a amante morreu porque estavam sob o efeito de drogas em práticas sadomasoquistas. Que estavam no meio do sexo e foi sem querer. Que pegou em álcool e isqueiro, mas não sabia o que fazia. O tribunal nunca acreditou na sua versão. “Foi doloroso ver a mãe e o pai. Ela era da idade da minha irmã. A família dela ficou destruída, a minha, a da minha companheira. Houve primos meus que deixaram de usar o nome. Os meus pais envelheceram. Eu perdi a minha vida. Isto é uma espécie de expiação mas não chega. Algumas vezes pensei acabar com a vida.” O que mais perturba não é ouvi-lo contar os detalhes do crime. Não é ouvi-lo dizer como está arrependido, como sente dor ou tentou o suicídio. É vê-lo ponderar cada frase, cada silêncio, e não ver o mínimo sentimento de culpa no seu rosto. Ver a boca carnuda a dizer uma coisa e o corpo a dizer outra.
As rotinas Deslizam de pijama pelos corredores e pelos pátios, a fazer lembrar os retratos dos velhos sanatórios carregados de nevoeiro e de mistério. Estão de pijama a almoçar e no café. Os mesmos pijamas e roupões de xadrez antiquado no recreio. De pijama a jogar à bola. De pijama nas casas de banho sem portas. De pijama na missa. Como se tivessem sempre acabado de acordar.
As mulheres estão em alas à parte e só se cruzam com os homens na missa. Todos os funcionários conhecem a relação causa-efeito: quanto mais mulheres estiverem internadas, mais fiéis estarão a ouvir o padre.
Maria é a mais nova e terminará em Outubro a pena de oito anos que está a cumprir em Tires por roubos. Aos 29 anos, tem dois filhos à sua espera. Quando se sugere que em Outubro poderá começar uma nova vida longe do crime, Maria dispersa-se, verbaliza que sim e chuta uma expressão de desprezo, arrebitando os beiços. Não conhece outra vida. Começou a snifar quando terminou o quarto ano. Depois começou a roubar para ter dinheiro para a coca. Aos 13 foi para um colégio, aos 16 já estava em Tires. Toda a família está ou já esteve presa.
Leonor podia ser avó de Maria. Ao olhá--la, carregada de roupão, cabelos brancos e olhar de luto, é fácil imaginá-la a tricotar meias de lã para os netos, mas não num estabelecimento prisional. Leonor tem 67 anos e ainda está à espera de julgamento. Quando se pergunta, com pezinhos de lã, o que lhe aconteceu, dispara à queima- -roupa: “Matei um homem.” Em Maio disparou dois tiros certeiros contra o vizinho da churrasqueira. Jura que agiu em desespero depois de ter passado anos a ver o assador de frangos a “fazer judiarias” a si e ao marido. Não estava em si, jurará ainda. “Foi com o bruxedo. Eles mandaram fazer bruxarias à bruxa Bela, ao pé do cemitério.” O marido foi para um lar em Alcobaça. Laura resignou-se. “Eu já não vou para lá. Vou presa por muitos anos.”
Psiquiatria Manuel anda com os olhos no chão como um animal abatido. Treme das mãos e das pálpebras. Roda os braços para trás das costas num só movimento giratório, como se os seus ombros fossem feitos de gelatina e não de ossos. Depois dirá pela milésima vez num dialecto inventado uma história que envolve um “eu levantei sozinho um Fiat Punto” e qualquer coisa como “esmaguei um ouriço-cacheiro”. Tem epilepsia e é o mais difícil dos doentes do serviço de psiquiatria. Durante a noite tenta o suicídio, queima colchões, esmurra colegas. Mas os exames pedidos pelo tribunal dizem que não é inimputável. Na sala de convívio, outro interrompe para contar as suas proezas no snooker. “Enfiei todas as bolas de uma vez no buraco. É um recorde, não é?” E outra vez: “Se é recorde é notícia e vai sair no jornal, não é?”
Entre o recreio e a hora de almoço recolhem às enfermarias. Na cama do fundo, um homem magro passa duas horas hipnotizado com os desenhos animados na TV. Não mexe um dedo. Não diz nada. Os colegas entram e sentam-se nas suas camas, virados para as janelas de grades. Não conversam, não pegam em nada para se entreterem. Vivem ali, dentro das suas cabeças. A imaginar o mar ou qualquer coisa que os ajude a existir.
Joaquim tem 26 anos e seis de prisão pela frente. Olhos verdes, orelhas largas, dentes partidos em meias luas. Tem dois filhos mas não sabe do paradeiro deles. Cresceu a ver o pai bater na mãe. Todos deixaram de o visitar à excepção dela. No final do desabafo, remata com uma frase simples: “A vida para uns é triste, para outros é alegre.” Patrício, que tem uns olhos enormes e saídos como os de uma máscara de Carnaval, foi condenado a dois anos por maltratar a mãe. “Só verbalmente. Ela vem ver-me, gosta muito de mim”, diz com os olhos a brilhar. “Nunca soube o que foi ter amor de pai. Isto é triste. Eu, estas pessoas aqui, só precisamos de carinho.” Ao fundo do corredor, Manuel abraça-se à barriga do guarda prisional como um pássaro a dormir na sua asa.
José, o parceiro da cama ao lado, é o homem da biblioteca. Tem mais de 60 e está neste momento a ser julgado. Há uns meses matou a mulher, depois de anos a ser vítima de violência doméstica. “Era a pessoa de quem eu mais gostava.” José começa a chorar e encobre os sons: os ombros soluçam como se estivesse num filme mudo e acompanham a dor. “Os filhos, a família dela, todos estão do meu lado”, diz, escondendo as lágrimas no bigode, como quem precisa de provar que não é um mau homem. Mais tarde receberá a visita do irmão, na sala onde dois casais se enroscam como duas raposas.
Naquela ala, por um momento, todos podem ser quem quiserem. O hospital-prisão está cheio de duplos. Vidas imaginárias. O mais provável é que mintam sobre os seus crimes. Não para parecerem melhores ou inocentes, mas criminosos maiores. Ali, um simples ladrão facilmente se pinta de assassino ou traficante. Todos competem para ser o maior bandido da história. Depois há quem vá mais longe e invente um Deus qualquer.
Zeus, preso porque “abanou” a mãe, identifica-se assim mesmo: por Zeus, “o deus do Universo, que tem o planeta dentro dele”. Tem 51 anos mas a idade dele parou nos 18, é ele que o diz. Tem quatro corpos, mas só usa um: os outros “estão guardados para o futuro”. Tem uma filha, que é a deusa do universo, que “fez 19 anos a 3 de Janeiro” mas “tem corpo de 13 porque foi exorcizada pelos demónios por ser a flor do verde”. Zeus diz que a Malveira é o centro do universo porque foi lá que Deus abriu a terra. “Então Zeus, quem é o Abraham Lincoln?”, “Sou eu, o Zeus.” “E quem é o presidente dos EUA?”. “O Zeus.” “E quem é que escreve os discursos do Cavaco Silva.” “Ah, isso não sei!” Zeus, que usava fraldas como uma criança, acreditava a sério na história que inventou. Morreu antes do final desta reportagem, de paragem cardíaca. Por sorte, tem três corpos suplentes e ainda pode pôr três corações a bater.

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