Num divórcio, os filhos são muitas vezes armas de arremesso entre os pais. Crescem com a culpa de serem os responsáveis.
A
minha mãe quer que eu me esqueça de metade de mim, disse André (nome
fictício) à advogada Filomena Neto, referindo-se ao pai, de quem a mãe o
escondera, impedindo o contacto. "Impressiona-me muito alguém com 15
anos andar à procura da outra metade dele. E não é o único a senti-lo, a
diferença em relação aos outros é que consegue verbalizar. É de uma
extrema violência um pai impedir o outro de estar com o filho."
André
- e os outros - são filhos de divórcios sem mútuo consentimento. Filhos
de casais em guerra aberta são muitas vezes as armas de arremesso no
meio das trincheiras familiares. A lei do divórcio de 2008 facilitou a
separação no papel, mas não poupou as crianças. "Este regime acabou com a
roupa suja que era lavada em tribunal mas os pais começaram a
aproveitar as sessões da regulação do poder paternal para se travarem de
razões", explica o advogado Rui Alves Pereira, presidente da Associação
A Voz da Criança.
A MÃE QUE FUGIU
André
passou meses sem ver o pai, vítima de um ódio que um dia fora amor. "E o
problema é que o tempo passa e cada dia o afastamento do outro
progenitor é maior. Para os adultos, um ano é pouco tempo. Para alguém
que tem cinco anos é um quinto da vida", remata Filomena Neto.
Rodrigo
tem agora seis anos. Os pais separaram-se quando tinha dois. "As coisas
começaram a correr mal quando ele nasceu porque a mãe desligou-se. Era
eu que o tapava de noite, que me levantava quando o ouvia chorar. Não
era viável eu e a mãe do Rodrigo continuarmos juntos. Separámo-nos e
propus que ele estivesse um dia comigo e outro dia com a mãe, era a
única maneira que eu tinha de garantir ao meu filho uma coisa tão básica
como o banho: assim sabia que ele tomava banho dia sim, dia não",
recorda Pedro, um empresário de 45 anos. Só que dois meses depois do
acordo a mãe foi buscar a criança à escola num dia que era do pai. E
desapareceu com o filho sem deixar rasto.
"Procurei
por ele em toda a parte. Fiquei desesperado: sabia que o Rodrigo não
tinha vínculo com a mãe e que dependia de mim". Sem contactos e sem
saber o que fazer, Pedro acionou a regulação do poder paternal. "Dois
meses depois fomos chamados a tribunal e quando lá cheguei descobri que a
mãe do meu filho tinha posto um processo-crime contra mim por violência
doméstica". O mundo de Pedro desmoronou. "Só voltei a ver o Rodrigo um
ano depois na Segurança Social, uma vez por semana. Quando me viu depois
desse tempo todo abriu a boca como que a perguntar: ‘Onde é que
estiveste este tempo todo?' O meu filho esteve sequestrado pela mãe,
fechado de tudo e todos". Meses depois, nova acusação: "A mãe participou
à PJ que eu tinha abusado sexualmente do meu filho". Pedro foi
"humilhado por uma técnica da Segurança Social. Tratava-me por ‘o pai
abusador' em frente ao juiz - enquanto a mãe foi sempre ouvida como
sendo a que tinha razão". Nessa altura, nas consultas do hospital, uma
médica detetou que algo não estava bem com Rodrigo. O Serviço de
Intervenção Precoce do Estado, também. O infantário onde entrara
recentemente corroborou. O tribunal aumentou as visitas do pai a
Rodrigo, por considerar que lhe faziam bem, mas a mãe voltou a
desaparecer com a criança mais um ano, sem que ninguém a conseguisse
localizar.
Pedro sofria cada vez mais. "Ia ao
grupo de mútua ajuda da associação Igualdade Parental de 15 em 15 dias e
chegou a falar em suicídio, por não aguentar não saber do filho, uma
hipótese que muitos pais e mães colocam quando estão privados do
contacto", explica o presidente da ONG, Ricardo Simões. "Numa página A4
com acusações infundadas destrói-se a vida de duas pessoas". Mas
Rodrigo, ainda que longe, serviu de alavanca para o pai não desistir. E
ainda bem. Face aos pareceres médicos e psicológicos, o tribunal decidiu
pouco depois que a criança passaria uma semana com o pai e outra com a
mãe. Na casa do pai, encontrou o boneco que não largava em bebé e que
esteve três anos à sua espera.
"Quando estava com
o pai, o Rodrigo era um menino feliz, espontâneo. Com a mãe, uma
criança triste, reservada, oprimida", conta uma das técnicas que
acompanhou o caso, a educadora de infância Zita Monteiro, da associação
Passo a Passo - que faz desde 2012 mediação familiar e supervisão de
visitas e convívios de crianças com pais por ordem do tribunal. Em
fevereiro deste ano, Rodrigo foi entregue ao pai e retirado à mãe. Foi,
ainda assim, proposto que a mãe fizesse visitas semanais, que ela
recusou. Há seis meses que não vê o filho".
No
outro dia, Rodrigo - que continua a ser acompanhado por especialistas
porque o seu desenvolvimento foi comprometido pelas dificuldades nos
primeiros anos de vida - disse ao pai: ‘O avô chamava-me e dizia para eu
gravar no microfone que tu eras mau e que eu não queria ver-te. Dizia
que se eu não dissesse ele se ia embora e não me fazia a árvore de
Natal".
ALIENAÇÃO PARENTAL
Há
quem chame alienação parental ao afastamento do filho de um dos
progenitores, provocado pelo outro, em regra, o guardião - mas o termo
não é consensual. "A imaginação humana é fértil em artimanhas, truques e
outras subtilezas quando se pretende atingir um determinado fim, sem
olhar a meios e sem se importar com as consequências. As motivações
também são ou podem ser, muito variadas, mas, por norma, andam
associadas a questões mal resolvidas da separação, a desejo de vingança e
inveja", escreveu o juiz desembargador José Bernardo Domingos.
"Relembramos
sempre às pessoas que não estamos a tratar do divórcio do filho, e sim
do divórcio do casal. Não há divórcios para filhos e pais. Nós
simplificámos o divórcio mas esquecemo-nos que por trás disso estão
pessoas em sofrimento, que fazem coisas que em circunstâncias normais
não fariam", acredita Filomena Neto. "As pessoas só se divorciam ao
mesmo tempo no papel, porque emocionalmente há sempre um que se divorcia
primeiro. E como estão em patamares diferentes entram num desequilíbrio
emocional", sublinha Rui Alves Pereira. "Houve um aumento significativo
dos exames sexuais a menores depois do caso Casa Pia, mas só no campo
das agressões sexuais 5 a 10% são acusações falsas, desde alguém que
quer prejudicar o outro em caso de divórcio a pessoas com distúrbios
psiquiátricos", comenta Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto
Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.
Susana
queria separar-se de José. José não queria separar-se de Susana. "Ainda
assim, durante os primeiros seis meses, e dentro da má relação que
tínhamos, tivemos residência alternada: uma semana os nossos filhos
estavam na minha casa, na outra semana na casa do pai. Quando meti os
papéis do divórcio tudo piorou. Foram de férias com o pai em agosto e
não voltaram. Estive dois meses e dezasseis dias sem os ver". Susana
sabe os dias de cor porque chorou em todos eles. "No dia em que não
voltaram é que me apercebi que o quarto estava quase vazio: durante os
seis meses em que mantivemos a residência alternada foram mudando a
pouco e pouco as roupas e os brinquedos para casa do pai sem que eu me
apercebesse, já estava planeado".
No primeiro dia
de aulas, Susana foi até à porta da escola. "Era a única forma de saber
deles. Só que quando os vi já não conhecia os meus filhos, nem sequer me
falaram". Quando se encontraram em tribunal para decidir a residência,
Joana, a filha mais velha, de 12 anos (são três) levou um papel na mão
que leu ao juiz. "Dizia que um dia eu tinha chegado tarde para o almoço,
que por isso queria ficar com o pai". Susana não queria acreditar. "Os
meus filhos fizeram-me lembrar as crianças que são raptadas e se
apaixonam pelo raptor, até porque sempre tive uma relação mais próxima
com eles do que o pai, que era mais autoritário. Só mais tarde soube o
que era alienação parental, caiu-me um prédio em cima da cabeça",
explica.
A residência das crianças passou a ser a
casa do pai. A casa da mãe passaram a ir de 15 em 15 dias ao domingo, só
que as coisas não corriam bem. "O meu ex-marido deu-lhes instruções no
sentido de funcionarem como um bloco: nos primeiros tempos iam à casa de
banho juntos, estavam sempre juntos no quarto, vigiavam-se uns aos
outros. Partiam o quarto todo de cada vez que vinham a minha casa e
quando iam de férias mudavam todos de número de telemóvel. Aquilo que o
pai lhes diz é que o traí, que destruí a nossa família". José, de cada
vez que a encontra diz que as crianças não suportam a mãe, mas a verdade
é que o tribunal não concorda e Susana conseguiu recentemente que eles
passassem um fim de semana de 15 em 15 dias com ela e todas as
quartas-feiras.
"A Joana começa a aproximar-se
mais de mim só que os dois mais novos cada vez que veem dizem que vão
contar ao pai. Mas já se sentam à mesa comigo, temos regras de
convivência, mas ainda não recuperei os filhos que perdi há dois anos".
MÃE NÃO SE DESLOCA 20 QUILÓMETROS
Jorge
(nome fictício) vive a 150 quilómetros da filha. Já está quase há um
ano sem a ver. "Quando ficou desempregado deixou de ter dinheiro para ir
vê-la: ou paga a pensão de alimentos ou gasta o dinheiro na viagem".
Acresce que a forma mais barata do pai ir ver a filha "é de autocarro,
só que como ela mora numa aldeia o transporte não vai até lá. A mãe da
criança teria de se deslocar 20 quilómetros para a levar ao pai mas diz
que não vai, não se flexibiliza minimamente para que o encontro com a
menina aconteça", conta Ricardo Simões, da associação Igualdade
Parental.
"Há muitos pais e mães que desistem a
meio do caminho, porque esperam tanto tempo...Depois de tentarem tudo,
com polícia, sem polícia, a baterem à porta, a telefonarem, a ir ao
tribunal e nada mudar, baixam os braços. Não desistem só por si, mas
também pelas crianças que assistem em sofrimento às lutas do casal e
sentem que os pais se separaram por sua causa", explica Zita Monteiro,
da Passo a Passo. Na associação - que funciona como último recurso no
entendimento dos pais - "tenta-se que a criança veja o outro progenitor
com outro olhar e que estabeleça com ele a relação que foi interrompida
ou que nunca chegou a existir".
A regra é os pais
não se cruzarem no espaço, que deve ser neutro e imparcial. "O não
residente chega antes e já se encontra dentro do espaço quando chega o
outro com a criança. Há situações em que a zanga é tão grande que à
saída temos de aguardar que o primeiro carro saia, só depois de passar é
que abrimos a porta ao outro. Também já tivemos de chamar a PSP para
evitar agressões entre o casal". E - acrescenta Tânia Martins,
assistente social na mesma associação - a maioria dos processos (neste
momento têm 70) acontecem com pais de uma classe média e média alta.
"Aliás, quanto mais formação académica têm, mais difícil é o processo
porque as pessoas têm mais defesas, mais resistência e maior capacidade
de argumentação", explica a psicóloga clínica Filipa Nogueira.
"Há
situações de conflito que são temporárias e não passam de réplicas de
um sismo. Depois existem situações que perduram no tempo e o amor aos
filhos torna-se apenas em posse, um exercício de poder puro e duro",
explica Filomena Neto. "Tive uma vez uma cliente que tinha duas filhas,
uma de dois e outra de quatro anos e que não deixava, nem por decreto, o
pai ver as crianças desde que ele tinha junto iniciado uma nova
relação. Dizia: ‘Nem pensar que as minhas filhas possam estar com essa
p***.' Um dia, ao sair do meu escritório a minha cliente é atropelada
uns metros mais à frente, a atravessar a passadeira. Morreu. Com quem é
que foram viver as crianças que ficaram sem mãe? Com o pai que mal
conheciam, porque não viam há meses, o que dificultou o processo todo",
recorda Filomena.
"Fiquei sempre a pensar que era
melhor não existir vida eterna, porque se existir essa senhora nem
precisava de ir para o inferno porque já lá estava. Somos muito
arrogantes e arrastamos os miúdos para situações muito complicadas, a
verdade é essa", conclui. O caso que mais marcou o advogado Rui Alves
Pereira ainda hoje o emociona. "A minha cliente lutou até à exaustão
pela filha. Raptou-a e trouxe-a para Portugal, porque estava a morrer
com um cancro e queria passar os últimos dias de vida com ela. Quando o
processo se resolveu finalmente em tribunal, com o pai da criança, ela
morreu uma semana depois". Mas cumpriu o último desejo.
CAIXA: OS FILHOS RICOS DE MEIOS POBRES
O
mediador familiar Jaime Roriz diz que os conflitos estão mais acesos
porque a sociedade evoluiu. "Antigamente o trabalhador sujeitava-se ao
patrão, tal como um pai que era afastado de um filho se sujeitava a
isso. A consciência dos direitos fez as pessoas litigar mais". "Isso
também mexeu com a noção de que os filhos pertencem à mãe; isso só não
acontecia quando a mãe era marginal. Agora, o mais comum é a residência
partilhada", acrescenta Filomena Neto. Hoje, o que acontece, com
frequência - e que é uma violência contra as crianças - é que muitas são
pobres não sei quantos dias por mês e quase ricas durante dois dias,
consoante os rendimentos dos progenitores. São "os filhos ricos de meios
pobres". Como é que se explica a uma criança de cinco anos que não pode
levar o casaquinho vermelho de que tanto gosta porque só pode usar
quando está com o pai?
Nenhum comentário:
Postar um comentário