sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Crianças são arma de arremesso nos divórcios


Num divórcio, os filhos são muitas vezes armas de arremesso entre os pais. Crescem com a culpa de serem os responsáveis.


A minha mãe quer que eu me esqueça de metade de mim, disse André (nome fictício) à advogada Filomena Neto, referindo-se ao pai, de quem a mãe o escondera, impedindo o contacto. "Impressiona-me muito alguém com 15 anos andar à procura da outra metade dele. E não é o único a senti-lo, a diferença em relação aos outros é que consegue verbalizar. É de uma extrema violência um pai impedir o outro de estar com o filho."
André - e os outros - são filhos de divórcios sem mútuo consentimento. Filhos de casais em guerra aberta são muitas vezes as armas de arremesso no meio das trincheiras familiares. A lei do divórcio de 2008 facilitou a separação no papel, mas não poupou as crianças. "Este regime acabou com a roupa suja que era lavada em tribunal mas os pais começaram a aproveitar as sessões da regulação do poder paternal para se travarem de razões", explica o advogado Rui Alves Pereira, presidente da Associação A Voz da Criança.
A MÃE QUE FUGIU
André passou meses sem ver o pai, vítima de um ódio que um dia fora amor. "E o problema é que o tempo passa e cada dia o afastamento do outro progenitor é maior. Para os adultos, um ano é pouco tempo. Para alguém que tem cinco anos é um quinto da vida", remata Filomena Neto.
Rodrigo tem agora seis anos. Os pais separaram-se quando tinha dois. "As coisas começaram a correr mal quando ele nasceu porque a mãe desligou-se. Era eu que o tapava de noite, que me levantava quando o ouvia chorar. Não era viável eu e a mãe do Rodrigo continuarmos juntos. Separámo-nos e propus que ele estivesse um dia comigo e outro dia com a mãe, era a única maneira que eu tinha de garantir ao meu filho uma coisa tão básica como o banho: assim sabia que ele tomava banho dia sim, dia não", recorda Pedro, um empresário de 45 anos. Só que dois meses depois do acordo a mãe foi buscar a criança à escola num dia que era do pai. E desapareceu com o filho sem deixar rasto.
"Procurei por ele em toda a parte. Fiquei desesperado: sabia que o Rodrigo não tinha vínculo com a mãe e que dependia de mim". Sem contactos e sem saber o que fazer, Pedro acionou a regulação do poder paternal. "Dois meses depois fomos chamados a tribunal e quando lá cheguei descobri que a mãe do meu filho tinha posto um processo-crime contra mim por violência doméstica". O mundo de Pedro desmoronou. "Só voltei a ver o Rodrigo um ano depois na Segurança Social, uma vez por semana. Quando me viu depois desse tempo todo abriu a boca como que a perguntar: ‘Onde é que estiveste este tempo todo?' O meu filho esteve sequestrado pela mãe, fechado de tudo e todos". Meses depois, nova acusação: "A mãe participou à PJ que eu tinha abusado sexualmente do meu filho". Pedro foi "humilhado por uma técnica da Segurança Social. Tratava-me por ‘o pai abusador' em frente ao juiz - enquanto a mãe foi sempre ouvida como sendo a que tinha razão". Nessa altura, nas consultas do hospital, uma médica detetou que algo não estava bem com Rodrigo. O Serviço de Intervenção Precoce do Estado, também. O infantário onde entrara recentemente corroborou. O tribunal aumentou as visitas do pai a Rodrigo, por considerar que lhe faziam bem, mas a mãe voltou a desaparecer com a criança mais um ano, sem que ninguém a conseguisse localizar.
Pedro sofria cada vez mais. "Ia ao grupo de mútua ajuda da associação Igualdade Parental de 15 em 15 dias e chegou a falar em suicídio, por não aguentar não saber do filho, uma hipótese que muitos pais e mães colocam quando estão privados do contacto", explica o presidente da ONG, Ricardo Simões. "Numa página A4 com acusações infundadas destrói-se a vida de duas pessoas". Mas Rodrigo, ainda que longe, serviu de alavanca para o pai não desistir. E ainda bem. Face aos pareceres médicos e psicológicos, o tribunal decidiu pouco depois que a criança passaria uma semana com o pai e outra com a mãe. Na casa do pai, encontrou o boneco que não largava em bebé e que esteve três anos à sua espera.
"Quando estava com o pai, o Rodrigo era um menino feliz, espontâneo. Com a mãe, uma criança triste, reservada, oprimida", conta uma das técnicas que acompanhou o caso, a educadora de infância Zita Monteiro, da associação Passo a Passo - que faz desde 2012 mediação familiar e supervisão de visitas e convívios de crianças com pais por ordem do tribunal. Em fevereiro deste ano, Rodrigo foi entregue ao pai e retirado à mãe. Foi, ainda assim, proposto que a mãe fizesse visitas semanais, que ela recusou. Há seis meses que não vê o filho".
No outro dia, Rodrigo - que continua a ser acompanhado por especialistas porque o seu desenvolvimento foi comprometido pelas dificuldades nos primeiros anos de vida - disse ao pai: ‘O avô chamava-me e dizia para eu gravar no microfone que tu eras mau e que eu não queria ver-te. Dizia que se eu não dissesse ele se ia embora e não me fazia a árvore de Natal".
ALIENAÇÃO PARENTAL
Há quem chame alienação parental ao afastamento do filho de um dos progenitores, provocado pelo outro, em regra, o guardião - mas o termo não é consensual. "A imaginação humana é fértil em artimanhas, truques e outras subtilezas quando se pretende atingir um determinado fim, sem olhar a meios e sem se importar com as consequências. As motivações também são ou podem ser, muito variadas, mas, por norma, andam associadas a questões mal resolvidas da separação, a desejo de vingança e inveja", escreveu o juiz desembargador José Bernardo Domingos.
"Relembramos sempre às pessoas que não estamos a tratar do divórcio do filho, e sim do divórcio do casal. Não há divórcios para filhos e pais. Nós simplificámos o divórcio mas esquecemo-nos que por trás disso estão pessoas em sofrimento, que fazem coisas que em circunstâncias normais não fariam", acredita Filomena Neto. "As pessoas só se divorciam ao mesmo tempo no papel, porque emocionalmente há sempre um que se divorcia primeiro. E como estão em patamares diferentes entram num desequilíbrio emocional", sublinha Rui Alves Pereira. "Houve um aumento significativo dos exames sexuais a menores depois do caso Casa Pia, mas só no campo das agressões sexuais 5 a 10% são acusações falsas, desde alguém que quer prejudicar o outro em caso de divórcio a pessoas com distúrbios psiquiátricos", comenta Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses.
Susana queria separar-se de José. José não queria separar-se de Susana. "Ainda assim, durante os primeiros seis meses, e dentro da má relação que tínhamos, tivemos residência alternada: uma semana os nossos filhos estavam na minha casa, na outra semana na casa do pai. Quando meti os papéis do divórcio tudo piorou. Foram de férias com o pai em agosto e não voltaram. Estive dois meses e dezasseis dias sem os ver". Susana sabe os dias de cor porque chorou em todos eles. "No dia em que não voltaram é que me apercebi que o quarto estava quase vazio: durante os seis meses em que mantivemos a residência alternada foram mudando a pouco e pouco as roupas e os brinquedos para casa do pai sem que eu me apercebesse, já estava planeado".
No primeiro dia de aulas, Susana foi até à porta da escola. "Era a única forma de saber deles. Só que quando os vi já não conhecia os meus filhos, nem sequer me falaram". Quando se encontraram em tribunal para decidir a residência, Joana, a filha mais velha, de 12 anos (são três) levou um papel na mão que leu ao juiz. "Dizia que um dia eu tinha chegado tarde para o almoço, que por isso queria ficar com o pai". Susana não queria acreditar. "Os meus filhos fizeram-me lembrar as crianças que são raptadas e se apaixonam pelo raptor, até porque sempre tive uma relação mais próxima com eles do que o pai, que era mais autoritário. Só mais tarde soube o que era alienação parental, caiu-me um prédio em cima da cabeça", explica.
A residência das crianças passou a ser a casa do pai. A casa da mãe passaram a ir de 15 em 15 dias ao domingo, só que as coisas não corriam bem. "O meu ex-marido deu-lhes instruções no sentido de funcionarem como um bloco: nos primeiros tempos iam à casa de banho juntos, estavam sempre juntos no quarto, vigiavam-se uns aos outros. Partiam o quarto todo de cada vez que vinham a minha casa e quando iam de férias mudavam todos de número de telemóvel. Aquilo que o pai lhes diz é que o traí, que destruí a nossa família". José, de cada vez que a encontra diz que as crianças não suportam a mãe, mas a verdade é que o tribunal não concorda e Susana conseguiu recentemente que eles passassem um fim de semana de 15 em 15 dias com ela e todas as quartas-feiras.
"A Joana começa a aproximar-se mais de mim só que os dois mais novos cada vez que veem dizem que vão contar ao pai. Mas já se sentam à mesa comigo, temos regras de convivência, mas ainda não recuperei os filhos que perdi há dois anos".
MÃE NÃO SE DESLOCA 20 QUILÓMETROS
Jorge (nome fictício) vive a 150 quilómetros da filha. Já está quase há um ano sem a ver. "Quando ficou desempregado deixou de ter dinheiro para ir vê-la: ou paga a pensão de alimentos ou gasta o dinheiro na viagem". Acresce que a forma mais barata do pai ir ver a filha "é de autocarro, só que como ela mora numa aldeia o transporte não vai até lá. A mãe da criança teria de se deslocar 20 quilómetros para a levar ao pai mas diz que não vai, não se flexibiliza minimamente para que o encontro com a menina aconteça", conta Ricardo Simões, da associação Igualdade Parental.
"Há muitos pais e mães que desistem a meio do caminho, porque esperam tanto tempo...Depois de tentarem tudo, com polícia, sem polícia, a baterem à porta, a telefonarem, a ir ao tribunal e nada mudar, baixam os braços. Não desistem só por si, mas também pelas crianças que assistem em sofrimento às lutas do casal e sentem que os pais se separaram por sua causa", explica Zita Monteiro, da Passo a Passo. Na associação - que funciona como último recurso no entendimento dos pais - "tenta-se que a criança veja o outro progenitor com outro olhar e que estabeleça com ele a relação que foi interrompida ou que nunca chegou a existir".
A regra é os pais não se cruzarem no espaço, que deve ser neutro e imparcial. "O não residente chega antes e já se encontra dentro do espaço quando chega o outro com a criança. Há situações em que a zanga é tão grande que à saída temos de aguardar que o primeiro carro saia, só depois de passar é que abrimos a porta ao outro. Também já tivemos de chamar a PSP para evitar agressões entre o casal". E - acrescenta Tânia Martins, assistente social na mesma associação - a maioria dos processos (neste momento têm 70) acontecem com pais de uma classe média e média alta. "Aliás, quanto mais formação académica têm, mais difícil é o processo porque as pessoas têm mais defesas, mais resistência e maior capacidade de argumentação", explica a psicóloga clínica Filipa Nogueira.
"Há situações de conflito que são temporárias e não passam de réplicas de um sismo. Depois existem situações que perduram no tempo e o amor aos filhos torna-se apenas em posse, um exercício de poder puro e duro", explica Filomena Neto. "Tive uma vez uma cliente que tinha duas filhas, uma de dois e outra de quatro anos e que não deixava, nem por decreto, o pai ver as crianças desde que ele tinha junto iniciado uma nova relação. Dizia: ‘Nem pensar que as minhas filhas possam estar com essa p***.' Um dia, ao sair do meu escritório a minha cliente é atropelada uns metros mais à frente, a atravessar a passadeira. Morreu. Com quem é que foram viver as crianças que ficaram sem mãe? Com o pai que mal conheciam, porque não viam há meses, o que dificultou o processo todo", recorda Filomena.
"Fiquei sempre a pensar que era melhor não existir vida eterna, porque se existir essa senhora nem precisava de ir para o inferno porque já lá estava. Somos muito arrogantes e arrastamos os miúdos para situações muito complicadas, a verdade é essa", conclui. O caso que mais marcou o advogado Rui Alves Pereira ainda hoje o emociona. "A minha cliente lutou até à exaustão pela filha. Raptou-a e trouxe-a para Portugal, porque estava a morrer com um cancro e queria passar os últimos dias de vida com ela. Quando o processo se resolveu finalmente em tribunal, com o pai da criança, ela morreu uma semana depois". Mas cumpriu o último desejo.
CAIXA: OS FILHOS RICOS DE MEIOS POBRES
O mediador familiar Jaime Roriz diz que os conflitos estão mais acesos porque a sociedade evoluiu. "Antigamente o trabalhador sujeitava-se ao patrão, tal como um pai que era afastado de um filho se sujeitava a isso. A consciência dos direitos fez as pessoas litigar mais". "Isso também mexeu com a noção de que os filhos pertencem à mãe; isso só não acontecia quando a mãe era marginal. Agora, o mais comum é a residência partilhada", acrescenta Filomena Neto. Hoje, o que acontece, com frequência - e que é uma violência contra as crianças - é que muitas são pobres não sei quantos dias por mês e quase ricas durante dois dias, consoante os rendimentos dos progenitores. São "os filhos ricos de meios pobres". Como é que se explica a uma criança de cinco anos que não pode levar o casaquinho vermelho de que tanto gosta porque só pode usar quando está com o pai?

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