segunda-feira, 7 de abril de 2014

Eutanásia para menores: os belgas enlouqueceram?

A propósito do recente acrescento à lei belga sobre eutanásia (2002), que a possibilita agora a menores que vão morrer a breve trecho com grande sofrimento físico, quero contrariar certas afirmações apocalípticas – veja-se, por ex., “As crianças belgas também são nossas” (PÚBLICO, 13/03) - e reafirmar o que me parece ser a justeza do dito acrescento.
a) O acrescento, já publicado no Moniteur Belge em 12 de Março, não diz em lado algum que são os pais a tomar a decisão final – tudo se encaminha, aliás, no sentido contrário  –, mas que é necessário o seu consentimento.
b) Decerto todos conhecemos casais que só muito dificilmente e com a passagem do tempo é que recuperaram da morte de um/a filho/a. Insinuar que as mães e os pais belgas são uns depravados morais que não hesitarão em propor ao seu menor que peça a eutanásia para se livrar dela/e parece-me um juízo temerário. Afirmar, como no mencionado artigo, que “o Parlamento belga aprovou a legalização do infanticídio ou homicídio a pedido [...] de terceiros” é dizer o que a lei não diz e... acreditar que os belgas enlouqueceram.
c) O acrescento exige aos menores capacidade de discernimento, atestado por especialista: não se pode tratar daquele menor que, perante a morte do pai, dizia perceber que ele de facto morrera, o que não percebia é que não continuasse a vir jantar a casa todos os dias. Este menor, claramente, não captava a noção de irreversibilidade que a morte implica, não tinha essa capacidade de discernimento e, portanto, nunca poderia pedir a eutanásia. Quer dizer, podia, mas qualquer especialista diria que o menor em causa não tinha a capacidade de discernimento imprescindível.
d) Pelo que já escrevi, nunca os menores de pouca idade - muito menos bebés poderão fazer este tipo de pedido.
e) É possível um menor ter capacidade de discernimento para pedir a terminação da sua vida? A este respeito, é fácil ironizar com a habitual inconstância dos menores, que tanto querem uma coisa hoje como amanhã uma outra. Deste modo procedem muitos menores “normais”. Não é para esses que o acrescento belga foi feito, mas para aqueles casos em que o menor foi obrigado a amadurecer rapidamente, em virtude do sofrimento que o levará à morte. Já E. Kübler-Ross, adversária da eutanásia, escrevia, atendendo ao seu contacto com menores a caminho da morte, que a doença os faz amadurecer muito depressa e que, várias vezes, mostram perante a morte uma lucidez e frontalidade maiores do que as encontradas em muitos adultos.
f) Sem a possibilidade de eutanásia estes menores de que fala o acrescento morrerão na mesma, mas mais devagar. Não se trata de optar entre a vida e a morte, como gostam de insinuar os opositores da morte assistida, quer se trate de adultos ou menores.
g) A possibilidade da morte assistida na Bélgica é conhecida dos menores, ou, pelo menos, da maior parte deles. De vez em quando, o próprio assunto é trazido ao de cima na escola primária, pois algum familiar ou vizinho de um membro da turma morreu desse modo. Neste aspecto, gostemos ou não, as crianças belgas não são as nossas, mergulhadas num ambiente cultural que não existe entre nós e que desde cedo as desperta para uma realidade que faria estranheza às nossas.
h) Choca-nos que os menores sofram terrores, quando deviam representar para nós o símbolo da vida na sua pujança. Mas o real resiste ao nosso desejo e, por vezes, condena-os sem piedade. Precisamente por causa deste sofrimento dos menores, e dos menores de idades mais precoces - aqueles que não teriam a tal capacidade de discernimento -, Dostoievski fazia Ivan Karamazov dizer que “devolvia” o bilhete a Deus, que não aceitava uma Criação que contivesse tal sofrimento. Para um crente, há aqui lugar para o Mistério, mas não para o irrealismo: de facto, há menores que morrem, há menores que morrem antes dos pais, o que nos parece uma aberração da natureza sem deixar de ser uma dura realidade. É essa realidade que tem de ser confrontada, precisamente para tentar perceber qual é, nesse caso, o superior interesse do menor a partir da sua própria perspectiva.
i. Apesar de se achar que os menores abrangidos serão muito poucos, considerou-se que a sua voz devia ser ouvida.
j. Os cuidados paliativos não são panaceia para toda a dor. Citemos o reputado médico Timothy Quill e fiquemo-nos por aqui: “O que fazemos [...] quando estamos a disponibilizar tratamento paliativo aceitável, e o nosso doente continua, mesmo assim, a morrer com grande sofrimento?”.
Docente aposentada da Universidade do Minho, autora de Ajudas-me a morrer?

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