— Não, meu Deus, não posso desejar isso. O que mais lamento é que o Tomás tenha sido obrigado a passar por aqueles três últimos dias — pensou para si.
Num destes domingos, no final da missa, Vanda voltou a recordar o dia em que levou o filho ao hospital para morrer. Sabia que aquele bebé de um ano e meio, a quem já nem sequer podia pegar ao colo, não era mais o seu Tomás. Olhava e via um corpo minúsculo e inchado, pálpebras fechadas, deitado numa maca, a gemer sempre que lhe tocavam e com dificuldade em respirar. “Nunca mais acordou, nunca mais abriu os seus olhos grandes, nunca mais sorriu. A dor já tinha tomado conta dele. Se logo nesse dia tivessem dado alguma coisa para ajudar o meu filho a partir... Foram mais de 48 horas. Ouvia as máquinas constantemente a apitar e só tinha vontade de puxar aqueles fios todos para que tudo acabasse o mais depressa possível.” A médica já estava com uma injecção na mão quando o coração de Tomás bateu pela última vez. “Sabia que era proibido, mas ia ficar só entre nós. Acabou por não ser preciso”, confessa Vanda Alcobia, portuguesa, 40 anos, emigrante na Bélgica há 15.
Tomás só vomitava e dormia. O pediatra dizia que era do leite mas decidiu fazer-lhe uma radiografia ao cérebro, “por descargo de consciência”. “Comecei a achar que o exame estava a demorar muito tempo, quando fui tentar perceber o que se passava, vi cinco médicos, muito sérios, a olhar para o ecrã onde aparecia o interior da cabeça do meu filho. Percebi logo que alguma coisa não estava bem”, conta Vanda. O pediatra pediu-lhe que descesse até ao seu gabinete. “Mas passa-se alguma coisa, doutor? É grave, não é?” “A Vanda vai ter de ser forte...” O diagnóstico foi o pior possível: um cancro no cérebro, nível 5, todos os ossos da cara do bebé tinham metástases.
A mãe que quis tentar um milagre para salvar o filho foi a mesma que, nos seus últimos três dias de vida, pediu a Deus, com todas as forças que tinha, para o levar. “As pessoas têm teorias sobre tudo mas ninguém consegue imaginar o que é olhar para o nosso bebé e só ver sofrimento. Ai, é uma dor tão grande, tão grande. Sentimo-nos inúteis, não sei explicar, mas é como se não valêssemos nada.”
“Voluntário, reflectido e repetido várias vezes”
Na Bélgica, desde 2002, é legal pôr fim à vida de um adulto que peça para morrer. Agora, a lei da eutanásia foi alargada a menores de 18 anos. O acto tem ser praticado por um médico e o menor deverá encontrar-se numa situação terminal (com dias ou poucas semanas de vida) e ser vítima de “um sofrimento físico constante e insuportável que não possa ser apaziguado”. O pedido para morrer tem de ser “voluntário, reflectido e repetido várias vezes” e a sua capacidade de compreender o que significa uma eutanásia atestada pela equipa clínica que o acompanha (enfermeiros, médicos, psicólogos) e por um psiquiatra infantil. O consentimento dos pais ou representantes legais é obrigatório.
Regras mais restritas do que as aplicadas aos adultos — que não precisam de estar num estado terminal ou ter um problema físico. Neste caso, a dor psicológica é levada em conta de igual forma. Para menores e maiores de idade, a condição fundamental é que o acto seja requerido pelo doente, sem qualquer pressão externa. Quando todas as partes envolvidas assinam o acordo de eutanásia, é administrado um barbitúrico (medicamento que reduz a actividade cerebral) para adormecer o doente. Quando isso não é suficiente para lhe pôr termo à vida, injecta-se um relaxante muscular que pára os batimentos cardíacos.
“Antes de se falar em eutanásia para menores, deveriam promover-se os cuidados paliativos pediátricos”, alerta Stéphan Clement de Clety, um dos três pediatras da Real Academia de Medicina da Bélgica que, apesar de não concordar com a nova lei, tem ajudado na sua estruturação. Na opinião do médico, esta mudança não passa de puro marketing político e de uma forma para poupar dinheiro: “Se és um político que se preocupa com crianças gravemente doentes, ficas bem visto perante a população. Além disso, sai muito mais caro estender e melhorar os cuidados paliativos do que legalizar a eutanásia. É mais fácil convenceres os teus pares a aceitar uma lei se esta tiver menos custos. Com isto, não digo que não deva existir, apenas que se deveria reflectir mais sobre o tema.”
Holanda, Bélgica e Luxemburgo são os únicos sítios do mundo onde a eutanásia activa (praticada por um médico a pedido do doente) é legal. Na Holanda, através do Protocolo de Groningen, os médicos são ainda autorizados, mediante autorização dos pais, a pôr termo à vida de recém-nascidos (entre 1 e 28 dias de vida) que sofram de malformações e doenças graves. Foi também o primeiro país a estender a prática a menores, em 2002, mas, ao contrário da Bélgica, estabeleceu uma idade mínima de 12 anos. “Decidimos não sugerir um limite porque há crianças de 12 anos com menos maturidade do que outras de apenas oito. Uma coisa é certa: uma criança que passe por uma doença grave cresce muito mais depressa do que outra da mesma idade que seja saudável”, esclarece Clement de Clety.
Em 2012, a Bélgica registou 1432 eutanásias, cerca de 2% do total de mortes. Os gémeos Verbessem, 45 anos, que nasceram surdos e pediram para morrer quando souberam correr o risco de cegar (o que os impossibilitaria de comunicar um com o outro) e Nathan, um homem transexual de 44 anos que solicitou uma eutanásia depois de uma operação de mudança de sexo ter corrido mal, são dois dos casos que geraram mais polémica. O médico responsável pelas três eutanásias justificou a sua decisão com o “sofrimento psicológico insuportável” dos doentes. “Existem falhas no controle das práticas de fim de vida, mas também é verdade que são menos do que as que existiam antes de a lei ter sido aprovada. É preciso frisar que a eutanásia sempre foi praticada, só que de forma ilegal. Legalizar significa estabelecer regras e reduzir o vácuo ético em torno do tema”, defende Chambaere.
Cheiro das flores frescas
Um, dois meses. Izabela deverá morrer quando começarem a desabrochar as primeiras flores da Primavera. A mesma estação que Iwona Socewir, 38 anos, passou a ver com outros olhos desde que soube da doença incurável da filha. Depois disso, “mudou tudo”. “Há menos tempo mas também se corre menos. As pequenas coisas, como o cheiro das flores frescas ou o primeiro sol de Março, têm outro valor... Não é, minha querida?” Izabela cerra ligeiramente os olhos e sorri, um sorriso grande que lhe rasga o rosto. É a única resposta que pode dar. Não anda, não engole e há dois meses deixou de falar — com excepção para alguns sussurros que lhe saem em forma de gemido e só a mãe parece ser capaz de compreender. Acabou de fazer 18 anos. Há seis, diagnosticaram-lhe doença de Huntington — um problema neuromuscular degenerativo que afecta a coordenação motora e várias capacidades mentais. Nomes demasiado difíceis para uma adolescente compreender.
Desde aí, têm sido anos de degradação — a degradação de um corpo que a mente não acompanha. “A minha filha está consciente. Todos os dias à noite a vejo sofrer, mas estou aqui para ajudá-la e fazer tudo o que for possível. Se um medicamento não está funcionar, procuramos outro. A eutanásia não é para mim. Não critico quem o faça, mas eu seria incapaz.” Um dia, Iwona explicou a Izabela o que era a eutanásia: “Significa que estás tão infeliz que já não queres ficar aqui. Que queres partir, ir ter com Deus. Mas, se partires, partes para sempre. Achas que é bom ou mau?”, perguntou-lhe. “É mau”, recebeu como resposta. “Ela vai partir, como toda a gente. Toda a gente parte. Mas não é uma coisa desejada, nem por mim, nem por ela. Os problemas existem, mas também temos muitos momentos felizes”, relativiza Iwona.
Os dias na Villa Indigo
A extensão da lei a menores de idade, sugerida pelos deputados Philippe Mahoux (Partido Socialista), ex-cirurgião e um dos pais da lei de 2002, Christine Defraigne (Movimento Reformista), e Jean-Jacques De Gucht (Liberais e Democratas Flamengos) foi aprovada pela Câmara dos Representantes da Bélgica a 13 de Fevereiro (com 86 votos a favor das bancadas socialista, liberal e dos ecologistas, 44 contra dos democratas-cristãos e 12 abstenções). Quando a contagem foi conhecida, as pessoas que assistiam no Parlamento gritaram “assassinos”. “O tempo do doente não é o mesmo tempo daqueles que legislam. Está na hora de legislar (...) Pediatras e enfermeiros confrontados com as situações dramáticas de que os menores são vítimas pediram-nos, alguns imploraram, para permitir uma extensão da lei da eutanásia aos mais jovens”, declarou Philippe Mahoux, em Dezembro, quando o projecto de lei passou no Senado. Uma petição que apela ao Rei Filipe para não assinar o documento, considerado “um primeiro sinal para outros líderes europeus fazerem o mesmo”, começou a circular na Internet no dia seguinte. Mas a decisão já está tomada e o monarca não deverá ter nenhuma influência, sendo o seu aval um acto meramente protocolar.
Apesar de já ser maior de idade, Izabela continua a ir à Villa Indigo todas as terças e quartas-feiras porque não existe outra instituição pública que a possa acolher enquanto a mãe está a trabalhar. “É como se, de repente, deixasses de ser uma criança doente e te transformasses num adulto capaz. Já ninguém quer saber de ti”, atira Iwona. Fazer colagens é aquilo que mais diverte Izabela: “Ela aponta, escolhe o tipo de cabelo, as roupas e os sapatos e nós montamos as bonecas como pediu”, explica a enfermeira Anne-Catherine Dubois enquanto abre um livro para mostrar o trabalho daquele dia.
Quase tudo é cor-de-rosa, o mesmo tom do verniz com que Iwona lhe pinta as unhas todos os dias. “É a primeira coisa que a Iza me pede quando se levanta. Se pudesse, só se vestia de cor-de-rosa, é uma vaidosa a minha filha. Não passa dois dias seguidos com os mesmos brincos, as argolas grandes de missangas são as suas preferidas.”
Iwona nunca dramatiza, fala de tudo com uma leveza difícil de entender a quem vê de fora. Pouco a pouco, prepara-se para a morte da filha, como se isso fosse possível. “Já conversei muito com a Iwona, é um processo de mentalização para quando chegar o momento não ser um choque”, revela a enfermeira da Villa Indigo. “É verdade, mas prefiro não pensar nisso. Sei que pode estar perto, mas se não pensar na morte estou a empurrá-la para bem longe”, responde a mãe de Izabela.
São muitas as vozes que se têm feito ouvir em conferências, debates e manifestações. De um lado, quem defende que a extensão da lei da eutanásia colocará os médicos numa situação ética delicada por considerarem ser impossível avaliar o grau de maturidade de uma criança; quem a acusa de não levar em conta a possibilidade de os pais não concordarem com o pedido do menor; e ainda há quem a considera uma “aberração”, uma medida “economicista”, “precipitada” e “dispensável”; um “primeiro passo muito perigoso” para que no futuro crianças com deficiências e distúrbios genéticos, como a Trissomia 21, também possam fazer pedidos de eutanásia. Do outro, os que garantem que privar os menores deste direito é menosprezar o seu sofrimento face ao dos adultos, que legalizar a prática é imprescindível para que a eutanásia deixe de ser feita às escondidas e sem regras e que este projecto de lei é fruto de uma necessidade denunciada por muitos profissionais, a trabalhar no terreno, durante a comissão de avaliação (que durou quase um ano e era composta por juristas, médicos e membros da sociedade civil).
No jornal La Libre Belgique, a presidente da Comissão Ética da Associação Belga dos Praticantes da Arte de Enfermagem defendeu que a doença terminal de uma criança já é por si uma “situação terrivelmente difícil” para “ainda se estarem a criar dúvidas éticas”. Catherine Stryckmans levanta uma série de questões: “O que vai acontecer quando os pais não estiverem de acordo um com o outro apenas pelo prazer de se contrariarem? (...) E qual será o impacto para um irmão ou uma irmã de saber que o pai e a mãe estão de acordo em matar mais rapidamente — porque afinal é disso que se trata — um filho?”
Em Outubro, numa sondagem La Libre Belgique / Rádio Televisão Belga Francófona, 38% da população revelou-se “completamente a favor” da nova lei, 36% “bastante a favor” e apenas 6% “completamente contra”. O pediatra Clement de Clety justifica estes números com uma falta de clarificação dos termos. “Como é óbvio, as pessoas acham normal que as crianças não tenham de sofrer antes de morrer. Se falamos de eutanásia, temos de garantir que nos referimos exclusivamente ao pedido para morrer feito pelo paciente. Às vezes, encontram-se artigos que falam de crianças entre um e 15 anos, peço desculpa, mas é impossível uma criança de três anos pedir uma eutanásia”, critica. Termos como “ortotanásia” (limitação ou suspensão da terapêutica) e “suicídio assistido” (auxiliar um doente a praticar o acto que conduzirá à sua morte) são muitas vezes confundidos com o de “eutanásia activa”.
Um menor não pede para morrer
Para a professora da Universidade do Minho, Laura Ferreira dos Santos, que estuda há vários anos questões relacionadas com a eutanásia, o que está a ser discutido é um direito fundamental que não pode estar sujeito ao poder das maiorias. “Os países do Benelux [Bélgica, Holanda e Luxemburgo] têm uma intervenção cidadã muito superior à nossa e também são muito menos influenciados pela religião. Em Portugal, nem sequer há uma associação ‘right to die [direito a morrer]’, o que já acontece em Espanha, França ou Itália. Mas o problema existe e já levou duas portuguesas a morrer na Dignitas [associação suíça que ajuda doentes terminais a morrer através do suicídio assistido].” Com uma opinião contrária, o presidente do Conselho Nacional de Ética não reconhece uma urgência em debater este assunto: “A minha sensibilidade é que a esmagadora maioria da população portuguesa não se revê nessa necessidade”, justificou à Rádio Renascença na semana passada Miguel Oliveira da Silva.
Um menor que peça para morrer, mesmo que gravemente doente, é uma situação muito rara — nisso, médicos e enfermeiros estão de acordo. Na Holanda, desde 2002, registaram-se apenas cinco casos, um deles num adolescente de 12 anos. “Está a criar-se uma lei para situações que não existem”, alerta a fundadora da Unidade de Cuidados Paliativos Pediátricos na região francesa da Bélgica e enfermeira do Hospital Universitário de Saint-Luc, em Bruxelas.
Os pais, desesperados, sim, já o fizeram muitas vezes. “Mas depois, de um dia para o outro, mudam de opinião. Quando chega a altura de aumentarmos a dose de morfina que vai tornar o doente sonolento, também são os primeiros a pedir para não o fazermos. Os nossos cuidados paliativos pediátricos funcionam muito bem: temos uma equipa de enfermeiros, com um telemóvel e um carro-farmácia, disponível 24 horas por dia. Se o doente estiver em casa e os pais não se sentirem confortáveis, dormimos lá; e quando o processo de morte se inicia, nunca saímos de perto. A administração de morfina, que vai aumentando de acordo com o desconforto, garante que a criança parta sem dor”, explica.
"Não quero partir como um peixe fora de água"
Vanda encontrou na equipa de cuidados paliativos do Hospital de Saint-Luc uma segunda família. Com eles, chorou, desabafou medos, falou abertamente da morte. “Depois de o Tomás partir, telefonaram-me várias vezes para saber como estava. Incansáveis, fenomenais, não podem deixar de existir”, descreve. Garantiram-lhe sempre que o filho não estava a sofrer, que as doses de morfina eram suficientes para que não sentisse dor. No entanto, houve um momento em que deixou de acreditar no que lhe diziam: “Era impossível não existir dor, eu tocava no Tomás e ele encolhia-se todo. Não sou parva, é claro que lhe doía. A maior aflição foi vê-lo, na fase final, com dificuldade em respirar. O meu filho morreu de uma forma que sempre me disseram que não iria acontecer.”
"Não quero partir como um peixe fora de água”. Foi a única coisa que Anne (nome fictício) pediu quando lhe disseram que provavelmente iria passar pelas mesmas dificuldades respiratórias dos meninos que viu morrer ao seu lado, no quarto do hospital onde ficou depois de ser operada. “Percebo que estejas assustada mas nós vamos estar lá, não deixaremos que sofras”, garantiu-lhe o pediatra. Morreu a 20 de Janeiro, o mesmo dia em que nascera 14 anos antes. Pediu ao pai para a levar para o hospital — nunca quis morrer em casa — e que chamasse toda a família para se despedir. Quando o fez, cobrou ao médico aquilo que lhe prometera.
Acabar com a fase de "quase-morte"
“Penso que quando existem bons cuidados paliativos não precisamos da lei. Tudo é feito com humanidade, são usadas todas as possibilidades para controlar a dor”, defende Sonja Develter. Kenneth Chambaere, do Grupo de Investigação de Cuidados de Fim de Vida, diz que a posição da enfermeira é “ingénua” e “irrealista”: “É verdade que alguns doentes adultos (entre 15 a 20%) desistiram do pedido de eutanásia devido aos bons cuidados paliativos, mas não é uma regra.”
Há quem defenda que um dos problemas desta lei é poder acabar com a fase de “quase-morte” em que as pessoas dizem viver “experiências tranquilizadoras”, que as ajudam a “partir em paz”. “Os políticos desconhecem este período. Quase todas as crianças que vão morrer têm a possibilidade de se sentir sair fora do corpo, experimentar outro nível onde se sentem felizes. Sei porque lido com elas todos os dias. Mas quando se fala nisso é como se fôssemos malucos, como se aquilo que não se pode explicar simplesmente não exista”, queixa-se Sonja Develter.
Para a professora da Universidade do Minho, nenhum desses motivos é suficiente para travar a lei da eutanásia, porque “as pessoas que narram essas experiências não morreram de facto, por isso é que falam delas”. “Estiveram algumas delas em morte clínica? Talvez, mas ‘regressaram’. Quem morreu nunca voltou para dizer como foi. Quando nem sequer a universalidade destas ocorrências está provada entre as pessoas que ficaram entre a vida e a morte, como dizer que é uma fase necessária? É uma posição irrazoável e ilógica. Mesmo que fosse provada a sua existência. E, perante o sofrimento, as pessoas podiam querer prescindir dela”, contrapõe Laura Ferreira dos Santos.
"O meu filho morreu no nosso ninho"
Depois de pedir a Elsie para não ficar triste porque em breve teria uma menina para o substituir, Rafael, nove anos, partiu em três a hóstia que o padre lhe deu — para si, para a mãe e para a enfermeira Sonja. Na sala, começou a rezar o Pai Nosso em espanhol. Cada vez mais azul, cada vez com mais dificuldade em respirar, insistia em dizer toda a oração em voz alta. No final, sentou-se no sofá, enrolou-se nos braços da mãe e morreu. Há 18 anos, Elsie não sabia que haveria de recordar o momento como “um dos mais bonitos” da sua vida.
Na Bélgica, um menor que esteja a ser acompanhado pelos cuidados paliativos pode escolher morrer em três sítios: no hospital, em casa, ou num dos centros de repouso para crianças. Sempre assistido por um enfermeiro ou médico da equipa. “O meu filho morreu no nosso ninho, nos meus braços, ao pé dos seus brinquedos; nem se pode comparar este conforto com a frieza de um hospital. O momento é de uma dor monstruosa, mas a forma como tudo está organizado ajuda”, conta Elsie Medina, 40 anos, dominicana a viver na Bélgica há quase três décadas.
A morte de um filho é uma cicatriz que nunca se apaga. Mas a ferida fecha, muito devagar, com o tempo. “Agora, há dias em que acordo e a primeira coisa em que penso já não é ‘o meu filho morreu’”, conta Elsie.
Nas famílias que a Revista 2 contactou, só as mães quiseram falar. Para os homens, parece ser mais difícil verbalizar o que sentem. Fecham-se, preferem não partilhar a mágoa. Vanda lembra-se de ir na auto-estrada e desejar enfiar-se debaixo de um carro para ir ter com Tomás. Diz que se não fosse o marido Miguel hoje não estaria viva. A seguir, foi a vez de Miguel fazer o luto: no último ano, entregou-se ao álcool e rejeitou acompanhamento psicológico. Elsie divorciou-se meses depois de Rafael morrer. O pai do menino entrou em depressão e nunca mais voltou a Bruxelas, nem para o seu funeral.
A psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross teorizou no livro On Death and Dying sobre as fases de luto por que passam as pessoas que têm de lidar com a perda. Distinguiu cinco momentos distintos: a negação, onde se rejeita a existência do problema; a raiva, marcada pela revolta e ressentimento; a negociação, fase em que se tenta fazer um acordo para retomar a normalidade — dentro de si próprio ou com o apoio da religião; a depressão, onde só existe tristeza, medo e desesperança; e a aceitação, momento em que começa a existir uma consciência das possibilidades e limitações.
No último mês de vida, Rafael concretizou os seus sonhos possíveis. Elsie vendeu o pequeno apartamento que tinha em Bruxelas para poderem “fazer tudo o que [o filho] quisesse”. Iam todos os dias ao restaurante comer bife com batatas fritas e beber Coca-Cola. Ainda que depois a comida custasse a passar na garganta. Foram três vezes à EuroDisney e compraram dezenas de jogos para a Sega, a consola da moda na altura. “É por isso que sou contra a eutanásia. O meu filho nunca me disse que queria morrer e fomos tão felizes naquele mês de Dezembro. Vivemos coisas juntos que nunca irei esquecer”, justifica. Só dois anos mais tarde, viria a perceber o que Rafael lhe quis dizer quando pediu para que não ficasse triste porque uma menina iria substituí-lo: estava grávida de Hermina, hoje com 15 anos.
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