Eu me ergo!
Pela menina que fui um dia,
Pela infância interrompida (.) por um amanhã em que o Fanado deixe de ser o nosso fado'
Poema de Rita Ié, lido na cerimónia do Dia da Mulher Guineense,
na Casa da Achada, Mouraria, a 30 de janeiro
A voz a estas mulheres. Oiça-se Aissatu Camará, a lembrar-se do dia
em que a tia pedira, e a mãe deixara, que a levassem para a barraca, na
mata, onde enfiam as meninas que vão ao sacrifício, ao fanado. "Só me
disse para não fugir e que, se tentasse, podia morrer." Tinha uns seis
ou sete anos. Ficou naquela mata durante três meses, a dormir no chão e à
chuva. Era tempo de férias, no verão tropical sempre cheio de
intempéries. Quando chegou a sua hora, obrigaram-na a ir para a barraca.
Aissatu conta que chorava com todas as suas forças. "Fiquei sem voz."
Não lhe valeu de muito. Pouco tempo depois, a mãe imigrava, deixando-a
ao cuidado dessa tia, em Bissau, até ao início da adolescência.
Com as mãos trémulas, e a garganta embargada, não esconde que a
invade uma série de sentimentos contraditórios. "A minha tia só me
mandou para aquilo por causa da festa." Ainda tentou desculpar a mãe.
Mas, na verdade, nem o tempo que passou Aissatu tem hoje 27 anos, a mãe
47, a tia 54 apaziguou a mágoa entre as mulheres da família.
"Continuam a defender que é bom, para se ficar pura", desespera a
jovem, que só há pouco tempo confessou o seu drama às melhores amigas.
"Porque se não se fala, nunca mais acaba." É uma realidade profundamente
enraizada no mundo africano, que ultrapassou fronteiras, galgou
continentes e hoje se cruza connosco, na rua apesar de, desde 1979, a
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Tortura contra as
Mulheres ter sido ratificada por 185 países. No globo, o drama atinge
proporções gigantescas: em 2010, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
estimava que já tivesse vitimado mais de 100 milhões de meninas, em 28
países (entre estes, a Guiné-Bissau). Mas, segundo a mesma OMS, Portugal
e o resto da Europa são atualmente países de risco, com a prática a
reinstalar-se devagarinho, devido aos fluxos migratórios.
Sabemos que a sexta maior comunidade de estrangeiros em Portugal é a
da Guiné. Segundo o Censo de 2011, há 7,2 mil milhões de mulheres
guineenses. Não se sabe quantas sofrem escondidas: decorre, até ao final
do ano, um estudo para conhecer a prevalência do fenómeno, coordenado
pela Comissão pela Igualdade de Género. Mas, segundo o retrato que se
segue, entre a comunidade feminina que veio da Guiné, uma grande maioria
será vítima de uma prática cercada de silêncios e vivida em segredo.
Fanado, s.m., apertado, muito justo. Mas também amputado, mutilado.
Ritual de iniciação na Guiné Bissau, frequente tanto nos bairros da
periferia dos centros urbanos como nas aldeias. É executado sempre em
terreno sagrado, com a aceitação da divindade.
Ali, uma mãe africana não é uma malfeitora, manda as filhas para a
festa porque é um costume. Na comunidade, todas as mulheres são
excisadas.
Em questão, diz a definição da OMS, estão todas as intervenções que
envolvem a remoção, parcial ou total, dos órgãos genitais femininos
externos ou neles provoquem lesões, por razões não médicas. Procede-se
ao corte total ou parcial do clítoris e do seu capuz, a raspagens,
perfurações, cortes. É realizada por fanatecas, as excisadoras, de alto
estatuto na comunidade. Os alvos são raparigas entre os 4 e os 12 anos
mas podem ser meninas mais novas. Sejam pedaços de vidro, sejam
canivetes, lâminas de barbear, tesouras ou navalhas, tudo serve para
cortar. A esterilização dos materiais não faz parte da intervenção, a
anestesia não é uma prática corrente. A excisão é socialmente
compreendida como um ritual de passagem à idade adulta, que permite a
integração social da menina e fortalece a coesão do grupo a que
pertence.
Isso vê-se na festa, a celebração que se segue, e nas oferendas, em bens ou dinheiro.
A excisão tem também, como objetivo, o controlo da sexualidade da
mulher. Em sociedades onde o prazer feminino não é permitido e a
virgindade é valorizada, a cicatrização pós-excisão, fechando o acesso
ao canal vaginal, acaba por funcionar como um "selo de garantia" extra
para os homens. É também o único tipo de violência de género feita pelos
familiares, convictos de que assim, mais tarde, as meninas não serão
ostracizadas. Estão convictos de que é um ato de amor. Independentemente
das hemorragias, das infeções e, tantas vezes, da morte...
Autoconsciência
Apostado em mudar este mundo, um grupo de jovens ganha força em
vários países europeus: Reino Unido, Irlanda, Holanda e Portugual.
"Queremos ser agentes da mudança", assume Diana Lopes, 28 anos,
coordenadora, na Associação para o Planeamento da Família, de projetos
para esta área. "Queremos dar ferramentas às mulheres para que o fanado
não se torne uma desculpa para conquistar poder na comunidade ou para
sobreviver." A história de Cadidjatu Baldé, 28 anos, já reflete uma
mudança. Há três anos em Portugal, não esquece o grande marco da sua
infância.
Foi uma avó que a excisou. Quando o assunto se tornou tema nacional,
há pouco mais de uma década, o pai chamou-a a ela e às irmãs e
pediu-lhes desculpa. "Disse que não sabia bem como era, que, se
soubesse, nunca teria aceitado." Agora, na sua família, mais ninguém
será excisado as sobrinhas, pequeninas, já foram poupadas. "Mas a
mentalidade de muita gente ainda não mudou..." Neste ativismo crescente,
uma das vozes mais destacadas é a de Filomena Djassi, que já cresceu em
Portugal mas nem por isso escapou à tradição: vem de uma família em que
corre o sangue dos fulas e dos mandingas, etnias adeptas do fanado, com
a ideia de proteger os filhos e garantir a sua sobrevivência.
A fazer um doutoramento, Filomena não quer falar de dramas, mas do
caminho de saída, do apoio às mulheres encaminhandoas para a escola.
Para isso, criou a Musqueba, movimento que visa a educação e valorização
de mulheres africanas nos contextos onde se inserem. "Temos de lhes dar
o poder de comandarem a sua vida, de assumirem a responsabilidade do
seu sustento." Esse é um ponto muitas vezes esquecido: "Passar por uma
excisão tem consequências físicas e psicológicas mas também sociais." É
por isso, defende, que há mulheres a trabalhar nas Nações Unidas que são
oficialmente contra a prática mas cujas filhas são mutiladas. Filomena
não desarma: "Não podemos ficar indiferentes a este holocausto
silencioso." O primeiro programa português contra a mutilação genital
foi lançado há cinco anos.
Em fevereiro passado, um outro rosto entrou na campanha. É o de uma
rapariga que segura um cartão em que se lê: "Muda®". Chama-se Yasmin
Sissé e tem 20 anos. Há 12 que não vai à Guiné. Na família, o fanado era
normal. Ela prefere falar do assunto na terceira pessoa.
Mas não hesitou em dar a cara: "Sou contra, como sou contra cortar o dedo a uma pessoa.
É algo que faz parte do nosso corpo." Tal como Filó, Yasmin sabe que a
tradição não tem nada de religioso: "Há pessoas que inventam muitas
coisas, são como os terroristas dizem que é tudo em nome de Deus, mas
não está no Corão." Ambas também sabem que, para muitas mulheres, ir
contra a tradição significa rejeição.
Peças-chave
"E como vivemos, se formos rejeitadas?" O repto é lançado por Anabela
Rodrigues, do grupo do Teatro do Oprimido, na festa da Casa da Achada,
no Dia da Mulher Guineense.
A peça chama-se Assim, quem vos vai querer? Da plateia, Adiato
responde prontamente: "Fazemos uma sociedade de rejeitadas " e é chamada
ao palco. Primeiro, veste a camisola, uma t-shirt branca com a frase
Muda® a Realidade da Excisão. Depois, atira: "Sou uma mulher livre, faço
o que quiser com o meu corpo." Adiato Baldé, 24 anos, vice-presidente
da Associação de Estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa, é filha da
presidente do Comité para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à
Saúde da Mulher e da Criança, na Guiné-Bissau. Está muito atenta à
comunidade residente em Portugal: "Muitas meninas vão de férias e, no
regresso, acabam no médico, porque estão com infeções." Em 2009,
Portugal assumiu, formalmente, um compromisso relativamente à eliminação
da excisão, inscrito no Plano Nacional para a Igualdade Cidadania e
Género. Esses votos são renovados hoje, 6, Dia Internacional da
Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.
Tanto na ação de prevenção prevista para a Escola Secundária da Baixa
da Banheira, na área do projeto Informar para a Sensibilização e
Intervenção (ISI) contra a Violência de Género, promovido pela
associação Uma, como na cerimónia no Hospital Amadora-Sintra para
alertar os profissionais de saúde.
A estas iniciativas, junta-se a campanha Pelo fim da Mutilação
Genital Feminina, conduzida pela Amnistia Internacional a partir de
Bruxelas, como pressão sobre as instituições europeias para
providenciarem proteção às mulheres e crianças que fogem dos seus
países, com medo de serem mutiladas.
Para já, sabemos que os homens são peça-chave: se o fanado deixar de ser pré-requisito para o casamento, tende a desaparecer.
Ussumane Mandjam, 33 anos, já decidiu: "As minhas filhas não serão
excisadas." Foi essa postura que fez a diferença, em casa de Fatumata
Djaló, 54 anos, há 23 a viver na linha de Sintra, em tempos uma
defensora da prática.
Quis excisar a filha, o marido não deixou.
Hoje sabe que "não há razão para cortar".
É verdade que tanto cá como na Guiné, onde o Parlamento assinou uma
lei específica em 2011, a prática é crime. É punida com penas dos oito
aos dez anos de prisão. Mas quem está na luta insiste que só a lei é
insuficiente: 80% da população guineense é analfabeta e sente as
campanhas como um ataque às suas convicções mais profundas. Fica o
alerta de Miguel Areosa Feio, da Associação para o Planeamento da
Família: "Passou a ser feito com crianças muito pequeninas, bebés, e de
uma forma ainda mais escondida."
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