Casos como este são usados para ilustrar a necessidade de aprovar um regime legal de co-adopção, que acautele o futuro das crianças e permita aos pais homossexuais partilhar direitos e deveres. “Quando se dão separações, as crianças, ao contrário do que acontece quando têm pai e mãe legais, ficam à mercê da vontade da única figura parental legal que têm. E, como se sabe, às vezes as separações correm mal” – aponta Isabel Advirta, da Associação Famílias Arco-Íris.
“É uma situação que está completamente desprotegida em termos legais”, admite o advogado Luís Grave Rodrigues, explicando que “a criança fica sem qualquer protecção” e que não é sequer possível ao progenitor não legal recorrer a um tribunal para tentar a regulação do poder paternal. “Estamos a falar de direitos do menor. Neste caso, do direito de continuar a ter contacto com alguém que sempre viu como seu progenitor e com quem tem laços”.
Filhos sem direito a herança
Grave Rodrigues, especialista em Direito de Família, sublinha, aliás, que a lei também não dá quaisquer direitos aos chamados ‘pais não legais’ em caso de morte do progenitor biológico. “Tive um caso de um pai homossexual cujo companheiro morreu e que perdeu o direito ao filho, porque os avós biológicos reclamaram a criança”. A situação não chegou sequer a ir a tribunal. “Não valia a pena. Nestas situações, o pai que criou a criança tinha tantas hipóteses de ficar com ela como um vizinho ou alguém que nunca tinha tido relação com o menor”.
Em caso de morte, há ainda outros direitos que ficam em causa. “Um filho de um casal homossexual só tem direito à herança daquele que for o seu progenitor legal”, aponta Grave Rodrigues.
Ao longo da vida de uma criança com dois pais ou duas mães, são várias as questões que se colocam. E os problemas podem começar logo na maternidade. “Há cerca de um ano, tivemos conhecimento de um caso em que a mãe teve complicações durante o parto e ficou inconsciente”, recorda Isabel Advirta. Sem possibilidade de ser autorizada a estar ao lado da companheira e impedida de tomar decisões, a outra mãe ficou horas sem saber o que se passava e sem poder ver o bebé. “Imagine a angústia: a companheira mal e ela sem saber nada e sem acesso à filha. Estas questões acontecem e mais frequentemente do que se possa pensar. Estas famílias têm sempre de lutar para explicar que são famílias”.
A luta das Famílias Arco-Íris pelo direito à co-adopção passa precisamente por sublinhar que se trata de legalizar uma situação que já existe e não de criar novas famílias. “A possibilidade de co-adopção, que de resto existe para casais de sexo diferente, minimiza estas angústias”, defende Isabel Advirta, que diz que todos os dias famílias gay têm de lidar com dificuldades que vão desde “a falta de justificação a ausências no trabalho ao carácter discricionário de escolas e hospitais” sobre quem pode acompanhar o menor.
Dois pais no coração, um pai à luz da lei
Jorge Cabral, um fotojornalista de 42 anos, e Pedro Mata, um médico de 51, deparam-se com situações destas desde que adoptaram uma criança há três anos. Para o filho, ambos são pais, mas à luz da lei só Jorge tem direitos. “Candidatámo-nos individualmente à adopção monoparental, visto a lei não permitir a adopção por casais do mesmo sexo. O nosso filho chegou primeiro pela candidatura do Jorge”, resume Pedro.
O casal garante que não sente qualquer discriminação, mas quando o filho de sete anos está doente só Jorge tem direito de o acompanhar no hospital ou de faltar ao trabalho para lhe prestar assistência.
“Na escola, no centro de saúde, no ATL, em todas as situações do quotidiano do nosso filho, fazemos questão de estarmos ambos presentes, sempre nos apresentámos como família, nunca tendo sido posta em causa por ninguém”, assegura Jorge, que reconhece estar nesta luta pela co-adopção por “defender mais família, mais amor”.
De resto, Pedro e Jorge, que vivem em união de facto desde 2007, sempre tiveram um projecto de família. “Não nos casámos porque queríamos ter filhos”, conta Jorge com um riso que evidencia a aparente contradição. “Durante o processo de adopção, omiti que vivíamos juntos. Nunca me foi perguntado directamente se era homossexual”, admite, explicando que a preocupação da assistente social e da psicóloga que acompanharam o caso foi a de garantir que Jorge tinha boas condições para ser pai e um suporte familiar em caso de morte ou incapacidade. “Como os meus pais deram sempre todo o apoio a este projecto, isso foi mais fácil”.
De resto, é esse apoio familiar que faz com que esteja mais descansado em relação ao futuro. “Se o pai Jorge morrer, ao pai Pedro não lhe é reconhecido nenhum direito para poder continuar a educar a criança que o ama como filho. Mas isso não é assunto que nos tire o sono, pois as nossas famílias sempre nos deram o seu apoio e todos estão a par da situação”, frisa Jorge, consciente de que nem sempre é assim. “Estamos nesta luta e damos a cara porque acreditamos que é possível mudar a lei, torná-la justa. Não só pela nossa família, mas também por outras que vivem em situações de maiores dificuldades e incertezas”, diz, orgulhoso de poder ser o retrato de “uma família feliz”.
Hoje, tem a certeza de que cria um rapaz sem problemas com o facto de estar numa família diferente da maioria: “Ele sabe que nasceu da barriga de uma mãe, como todos os bebés. Ele próprio explica que a sua mãe não conseguia cuidar dele e que, por isso, estava numa casa de meninos sem família, quando o pai Jorge o foi buscar para ficar na sua família para sempre, para ser feliz”. E ter dois pais não é coisa que o preocupe: “Também é o próprio a explicar, sem nenhum embaraço e com toda a naturalidade, que tem dois pais”.
margarida.davim@sol.pt
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