Os jovens estão mais sensibilizados para o fenómeno da violência no namoro, mas ainda são poucos os que procuram ajuda ou apresentam queixa. Ao Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Beja (NAV) chegaram, durante 2012 e 2013, apenas seis novos casos de violência no namoro, um número “bastante baixo face à incidência estimada deste fenómeno”. De acordo com o NAV, “existem táticas subtis e formas mascaradas de exercer poder e controlo sobre a outra pessoa e que podem ser impercetíveis”, o que “contribui significativamente para que não exista pedido de apoio”. Há também quem não o faça “por vergonha, medo ou numa tentativa de proteger o agressor”. O núcleo de atendimento registou ainda, em 2013, “um aumento visível da gravidade da violência exercida”.
Texto Nélia Pedrosa Ilustração Susa Monteiro
A desvalorização de certos comportamentos agressivos entre namorados, entendidos muitas vezes como demonstrações de afeto, como algo normal, aceitável (o caso dos ciúmes, do controlo) ou a vergonha e o medo de serem culpabilizados leva a que a violência no namoro seja ainda um fenómeno “encoberto”. O Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Beja (NAV), estrutura coordenada pela Moura Salúquia – Associação de Mulheres do Concelho de Moura, recebeu durante 2012 e 2013 apenas seis novos casos de violência no namoro, “que resultaram em inúmeras diligência e atendimentos”. Um número “bastante baixo face à incidência estimada deste fenómeno, o que se explica tendo em atenção as suas características próprias”, afirma Patrícia Cardoso, uma das técnicas do núcleo, adiantando que “a violência tende a ser um fenómeno encoberto” e, no que toca à violência no namoro, “existem táticas subtis e formas mascaradas de exercer poder e controlo sobre a outra pessoa e que podem ser impercetíveis”, o que “contribui significativamente para que não exista pedido de apoio”. Para além destes novos casos o núcleo acompanhou, nos dois anos referidos, situações que transitaram dos anos anteriores, também em número pouco expressivo.
Frequentemente as vítimas e os agressores “não entendem a dimensão criminal dos atos sofridos/ /perpetrados ou não os entendem sequer como comportamentos abusivos”, continua a técnica de Serviço Social. Há também “ainda muitas pessoas que por vergonha, medo, sentimentos de culpa ou numa tentativa de proteger o agressor, por quem têm sentimentos ambivalentes, não procuram ajuda”. As poucas denúncias que chegam ao NAV não representam, assim, “a inexistência de situações de violência no namoro mas sim a sua ocultação”, daí que seja um fenómeno “tão preocupante”, reforça Patrícia Cardoso. Há mesmo “alguns estudos que têm chegado à conclusão que a violência no namoro é mais frequente do que a violência entre pessoas casadas ou em união de facto”, salienta a técnica. E um fator ligado a estes dados “pode estar relacionado com a legitimação da violência por parte dos jovens, sendo frequente a banalização e até a romantização de alguns aspetos violentos. Por isso recebemos menos denúncias de violência no namoro e mais de violência conjugal”, diz.
Ainda de acordo com os dados disponibilizados pelo NAV, as seis novas vítimas registadas em 2012 e 2013 eram do sexo feminino, tinham entre 19 e 24 anos e o terceiro ciclo de escolaridade e ensino secundário. A nível global verifica-‑se, no entanto, que “a violência no namoro tende a ser cada vez mais precoce”, realça Patrícia Cardoso.
Agressões com recurso a objetos perigosos, como x-atos Os referidos casos de violência chegaram ao Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Beja encaminhados, maioritariamente, pelos serviços de saúde, o que, nas palavras da técnica, “atesta a gravidade das situações que chegam aos serviços e a invisibilidade e mais difícil deteção de outras formas de violência”. Aliás, as grandes diferenças verificadas entre 2012 e 2013, no que toca às novas situações de violência no namoro acompanhadas, dizem respeito “à dinâmica abusiva”. No ano passado “constatou-se um aumento visível da gravidade da violência exercida”: “Os episódios foram mais graves e deixaram mais sequelas, com recurso a objetos perigosos, como x-atos, e obrigando a mais entradas no serviço de urgência do hospital, por exemplo”, revela Patrícia Cardoso. Em 2013, no universo total de vítimas acompanhadas pelo núcleo, “a violência física e psicológica”, o tipo “mais frequentemente exercido”, estava presente “em 66 por cento das situações”.
A violência exercida sobre a vítima pode ainda ser do tipo verbal, social e sexual. Nas relações de namoro entre os mais jovens, “a violência verbal e a violência psicológica (gritar, chamar nomes, apontar defeitos e falhas, humilhar junto de outras pessoas)” surgem “com mais frequência”, diz a técnica. Mas, apesar de estas formas de violência “poderem parecer menos graves”, costumam evoluir. Com o passar do tempo “a violência torna-se mais grave, mais perigosa para a vítima, mais intensa e mais frequente, isto é, acontece cada vez mais”, esclarece, adiantando que “algumas situações de violência sexual no namoro têm a ver com a ideia de que o sexo é obrigatório ou que ‘faz parte’”. Por outro lado, quando a violência sexual acontece, “a vítima pode não identificá-la como uma experiência de violência (por exemplo, acham ‘normal’ ceder e aceitar ter relações sexuais porque o/a namorado/a insiste muito ou faz ameaças de que acaba a relação se não o fizerem)”, acrescenta.
Nos casos acompanhados pelo NAV, “em nenhum se verificou apenas um episódio violento”, ou seja, houve “reincidência em todos”, explica Patrícia Cardoso, que chama a atenção para a necessidade “de se refletir sobre a probabilidade destas dinâmicas se manterem em relações futuras, uma vez que há padrões de comportamento aprendidos”. Um dos casos foi encaminhado para a GNR e outro para o Ministério Público. “A forma de atuação em cada caso é analisada e decidida individualmente, uma vez que diferentes vítimas nos trazem diferentes necessidades. O que procuramos fazer é uma avaliação geral da situação, do impacto da vitimação e do risco associado. A partir daqui traçamos um plano de intervenção em conjunto com a vítima e agilizamos sempre que necessário o encaminhamento apropriado para os nossos parceiros”.
Embora a totalidade das novas vítimas registadas nos dois últimos anos pelo NAV seja do sexo feminino, a violência no namoro não é uma violência de género. Ao contrário do que acontece nos casos de violência conjugal, em que as vítimas são, na sua maioria, mulheres, na violência no namoro “encontra-se algum equilíbrio no que toca ao sexo das vítimas e dos agressores”, diz a técnica de Serviço Social. As raparigas costumam “agredir através de estratégias de violência que não utilizam a força física (insultar, gritar, envergonhar)” e os rapazes “mais facilmente utilizam a violência física (bater, empurrar, agarrar)”.
“O silêncio é muitas vezes a arma mais poderosa dos agressores” A problemática da violência no namoro “tem sido uma preocupação” desde que o NAV entrou em funções, em 2008. Por isso, “desde cedo”, a prevenção nesta área foi apontada como “prioritária”. O núcleo tem vindo a realizar diversas ações de sensibilização um pouco por todo o distrito, ações essas que, em média, por ano, contam com a participação de cerca de 350 jovens do terceiro e do ensino secundário. “Acreditamos que os jovens estão hoje mais sensibilizados. Nestas ações participam ativamente, fazem perguntas pertinentes e procuram soluções para casos que conhecem. Para nós tem sido uma forma privilegiada de perceber como se posicionam os jovens face a esta problemática”, diz Patrícia Cardoso. “Infelizmente”, o NAV ainda se depara com “muitos estereótipos e ideias erradas”. A “romantização do ciúme e da posse, a atribuição de culpa e justificação dos episódios violentos, a ideia de que a vítima só mantém a relação porque quer ou a convicção de que a violência é apenas um problema do casal”. Por isso mesmo ainda há um longo caminho a percorrer. Devido às ideias manifestadas pelos jovens, mas também porque as denúncias que chegam ao núcleo “não correspondem à realidade”.
“É preciso continuar a apostar nesta sensibilização, mas também na preparação de pais e estruturas diversas da comunidade para a intervenção junto desta problemática. A responsabilidade é de todos. E os resultados dependem também destas parcerias e envolvimento. Se dissermos numa só voz que não toleramos a violência, certamente somos mais facilmente ouvidos”, afirma a técnica, que conclui deixando uma mensagem aos jovens: “O amor violento não é amor e o respeito deve fazer parte deste sentimento. A violência é uma forma inaceitável de resolver os conflitos e com o tempo tende a tornar-se mais grave, mais frequente e mais destrutiva. Procurar ajuda pode ser decisivo para inverter um percurso que provocará sérios danos. O silêncio é muitas vezes a arma mais poderosa dos agressores e quando procuramos este apoio estamos a dar um passo fundamental para quebrar o ciclo da violência”.
O que é a violência no namoro?“A violência no namoro caracteriza-se pela ocorrência de atos de violência, pontual ou contínua, cometida por um dos elementos do casal ou por ambos, com o objetivo de controlar, dominar e ter mais poder do que a outra pessoa envolvida na relação. Existem diferentes formas de violência no namoro, umas mais visíveis e fáceis de identificar do que outras, mas todas com sérias consequências para a vítima. A violência pode ser física, verbal, psicológica, sexual e social ”, diz Patrícia Cardoso, do Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Beja.
Estudo nacional revela que um em cada quatro foi vítima de agressãoO maior estudo nacional sobre a prevalência da violência do namoro foi realizado em 2009 por Sónia Caridade, atual investigadora da Universidade do Minho, e envolveu 4 667 jovens com idades entre os 13 e os 29 anos. Destes, 25 por cento afirmou ter sido vítima de, pelo menos, uma agressão no último ano e 31 por cento admitiu ter sido agressor. Vinte por cento das vítimas sofreu violência emocional, 13 por cento violência física e 20 por cento agressões mais severas. No caso dos agressores, 22 por cento admitiu ter recorrido à violência emocional, 12 por cento à violência física e sete por cento a agressões mais severas.
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