segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Gangues de boas famílias lutam quase até à morte


por Catarina Guerreiro e Joana Ferreira da Costa
Casos de agressão extrema e gratuita com jovens de classes altas são um novo fenómeno que está a crescer. Em pouco mais de uma semana, três jovens foram brutalmente espancados. Psicólogos e cirurgião plástico confirmam tendência.
Em apenas dez dias, três jovens foram espancados quase até à morte. Os casos envolvem 'filhos de boas famílias' e prometem desmascarar um fenómeno recente e escondido: a violência extrema e gratuita entre jovens de classe alta. Os pais das vítimas garantem, em declarações ao SOL, que vão levar os casos até às últimas consequências, na Justiça. A Polícia, por seu lado, assume que esta realidade é quase desconhecida, o que se deverá em parte ao facto de as famílias optarem muitas vezes por abafar os casos.
“É hora de acabar com esta violência entre os miúdos”, diz a empresária Mónica Carrelhas, que no passado sábado encontrou o filho, de 17 anos, em estado crítico no Hospital S. Francisco Xavier, em Lisboa, com um traumatismo craniano. Francisco Carrelhas foi brutalmente espancado por um grupo de adolescentes, após um jogo de rugby no Dramático de Cascais.
Atacado pelas costas com um murro no ouvido que o deitou ao chão, Francisco nunca mais se levantou e continuou a levar socos. Desmaiou, ficou inconsciente e começou a esvair-se em sangue e a ter convulsões.
Nesse momento, surgiram mais agressores e um deles começou a bater-lhe com um capacete de motard. “Não íamos deixar um amigo ser espancado. Por isso, eu e a Vera agarrámo-nos a ele e levámos também com o capacete”, conta Matilde ao SOL. A adolescente, neta do fadista Carlos do Carmo e do advogado Vieira de Almeida, garante que nunca vai esquecer o que viu: “Foi horrível, horrível. Quando acabou, é que entrei em pânico. Até aí, a adrenalina era tanta que nem senti nada quando me estavam a bater com os capacetes”.
Entre os agressores, ao que o SOL apurou, estão o filho e um sobrinho de uma procuradora da República do círculo de Cascais. O primeiro, de 18 anos, terá estado também internado num hospital, devido a cenas de pancadaria causadas por rivalidades entre grupos de Lisboa e de Cascais.
Acto de vingança
Francisco conhece estes rapazes que o agrediram. Têm, aliás, um amigo em comum, de nome Pedro e que recentemente se envolveu em espancamentos com os agora agressores.
Segundo confessou na semana passada à SIC um dos jovens que pertence ao grupo que bateu em Carrelhas, o espancamento foi um acto de vingança por ele ser amigo de Pedro. O mesmo rapaz acrescentou que, nos últimos tempos, estes ataques violentos de jovens têm vindo a aumentar. “Querem-se afirmar”, explicou.
Para Mónica, nada justifica o que aconteceu ao filho. “Quem viu diz que a violência era tal que parecia que queriam matá-lo”, conta, acrescentando que entregou o caso ao escritório de João Vieira de Almeida, pai de Matilde, uma das raparigas agredidas. “Vou querer que seja feita justiça”, tem dito Mónica nas redes sociais - onde desde o primeiro dia pôs a circular uma fotografia do filho na cama do hospital. “Mas não queremos que sejam feitos julgamentos ou acções que visem repor a justiça, pois violência só gera violência”, diz, acrescentando que é preciso “acreditar nos tribunais”.
Pouco depois de saber o que sucedera com o seu filho, tentou entrar em contacto com os pais dos agressores, mas nem todos se mostraram interessados. A mãe de um dos rapazes que liderou o ataque, e que pertence a uma família de magistrados, terá pedido para “não ser importunada com problemas do filho”, que tem 18 anos.
Francisco está em casa. Mas se a recuperação física tem tido progressos, a psicológica parece estar a ser mais complicada.
'Queriam matá-lo'
Poucos dias antes deste brutal espancamento, um episódio semelhante atingiu João, de 18 anos. O pai, Miguel, advogado de profissão, também quer que seja a Justiça a resolver a violenta agressão ao filho, na madrugada do primeiro dia do ano. “Quem atacou o João queria matá-lo. Ninguém dá facadas no pescoço e na cara sem essa intenção, e continua depois a agredir com pontapés na cabeça um rapaz que já está no chão, inconsciente” - conta ao SOL o advogado lisboeta, que prepara uma queixa por tentativa de homicídio, que será apresentada pelo filho, por este ser maior.
João, estudante no Instituto Superior Técnico, esteve dois dias internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com um traumatismo craniano. Já está em casa, a tentar estudar para os exames, mas ainda não se refez do choque.
Na madrugada de 1 de Janeiro, preparava-se para voltar para Lisboa, com dois dos irmãos e um grupo de amigos, depois da passagem de ano em Sesimbra. Na rua, cruzaram-se com um grupo de jovens, alguns conhecidos de Lisboa: sem perceberem como, rebentou uma zaragata. João tentou então separar um amigo que estava a ser agredido. Terá dado um murro ao agressor e, por isso, começou a ser perseguido pelo grupo, rua fora. Refugiou-se num hotel próximo e escondeu-se por trás do balcão da recepção, mas os agressores invadiram o hall do edifício e foram buscá-lo. O jovem foi então espancado com murros, pontapés na cabeça e facadas no pescoço e na cara. Ficou inconsciente. Um dos seus amigos também foi atacado com uma facada no pescoço.
Os agressores ainda tentaram arrastar João para fora do hotel. “A sorte do meu filho, que estava desmaiado, foi ter ficado preso na porta giratória do hotel e eles não conseguiram puxá-lo para a rua”.
João conhece de vista um dos agressores, um adolescente de Lisboa. E Miguel já contactou a mãe do jovem informando-a que será apresentada uma queixa por tentativa de homicídio, por entender, como pai, que não deve actuar criminalmente contra um jovem sem dar conhecimento à família. Já antes participara a agressão na GNR de Sesimbra.
Ao SOL, o Comando de Setúbal da GNR confirma que os agressores já foram identificados e que enviou a informação recolhida para o Ministério Público no Tribunal de Sesimbra. É neste tribunal que a queixa vai dar entrada. Ao que o SOL apurou, um dos agressores é um antigo aluno do colégio Moderno, que estuda agora num liceu da capital, e outros três jovens serão de Sesimbra.
As autoridades policiais também já contactaram o hotel onde ocorreram os incidentes. “Pediram para preservarmos as imagens das câmaras de vigilância onde tudo ficou gravado”, contou ao SOL o director da unidade, que já se reuniu com os pais dos dois jovens agredidos.
O pai de João não compreende o grau de violência envolvido. “São grupos de jovens que parecem hienas prontas a atacar violentamente sob qualquer pretexto”, diz o advogado. “Antigamente, também havia cenas de pancadaria: mas era de um para um, com murros e mais lealdade”.
Também na noite da passagem do ano João A., de 27 anos, foi espancado por um conhecido, à saída de uma festa, em Lisboa, em casa de um amigo comum, onde estavam 14 pessoas. Foi internado no hospital e operado aos traumatismos nesse mesmo dia. A família ficou indignada e também vai avançar para tribunal.
Cirurgião corrige cicatrizes
Às mãos do cirurgião plástico Biscaia Fraga chegam “cada vez mais” adolescentes que procuram disfarçar as cicatrizes deixadas por rixas violentas. “Querem corrigir sobretudo lesões no nariz, nos lábios, mas também cicatrizes na cara e no pescoço”, revela ao SOL o especialista, lembrando que até há cinco anos estes casos eram “raríssimos”.
As vítimas são sobretudo rapazes. “Atendi recentemente um adolescente de 16 anos, da alta sociedade, que veio corrigir uma grande cicatriz no queixo e outra no pescoço”, conta o cirurgião, lembrando que o jovem chegou acompanhado pelo amigo que o 'salvou' na briga. “O jovem nem conseguia relatar a cena. Foi o colega que explicou que fora pontapeado e esmurrado”. Mas Biscaia Fraga acredita que a história estava mal contada: “As lesões eram mais compatíveis com uma arma branca ou um objecto contundente”.
Mais agressividade
Também a psicóloga Célia Alverca, no Agrupamento de escolas Lima de Freitas, em Setúbal, não tem dúvidas de que as agressões entre os jovens são cada vez mais violentas: “Rixas e brigas sempre houve, mas a experiência no terreno mostra-nos que nos últimos tempos o nível de agressividade tem crescido”.
A especialista recorda que muitos adolescentes crescem quase sem controlo dos pais. Mesmo nas camadas sociais mais altas, vivem refugiados na internet ou em jogos electrónicos que promovem a violência gratuita. “É fundamental a comunicação e controlo parental”. A esta realidade junta-se o facto de ser muito vulgar nestes casos de violência os jovens terem consumido álcool e drogas, que provocam alterações de consciência.
“Além disso, na adolescência o efeito do grupo tem um enorme peso e leva-os a ter atitudes que nunca teriam individualmente”, diz Cláudia Vieira, também psicóloga do mesmo agrupamento.
As autoridades policiais, por seu lado, parecem surpreendidos com o fenómeno, e associam actos violentos a actividades criminosas. “Não temos identificados grupos que usam a violência pela violência, de forma indiscriminada, mas sim grupos que a usam como método para levar a cabo a sua actividade criminosa, que geralmente está associada a roubos, tráfico de droga, segurança ilegal na noite e também rivalidades por causa de namoradas”, disse ao SOL fonte da PSP.
*com Sónia Graça

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