Nenhum
sinal de vida. Corpos: escuros, com presença de larvas, sombras
alienígenas do que terão sido. Hora e causa do óbito: por apurar. Quando
a polícia e os bombeiros entraram finalmente no apartamento e
encontraram os corpos na cama, a filha de Manuela, de que ninguém sabe o
nome, trancou-se no carro, enorme nos seus remorsos e culpa, e dali não
saiu. Do outro lado da rua, Sandra e Paulo, que tinham passado dias e
dias a ligar para a PSP a pedir socorro, mal viram um agente vir na sua
direcção tiveram a certeza: "Eles estão mortos."
Manuela e Ludgero
Matias, ela com pouco mais de 60 anos, ele já nos 70, tinham sido
vistos pela última vez havia 18 dias. Nesse sábado, ao fim da manhã,
Manuela chegou ao café da esquina com um novo corte e uma nova cor de
cabelo, mais avermelhada, mas desta vez pouco falou. A Sandra e Paulo
pediu apenas que cuidassem do Dusty, o seu pequeno cão branco arraçado
de minitoy, até quarta-feira, data em que ela e o marido regressariam de
uns dias em casa do irmão. Entregou-lhes um saco, passou a trela para a
mão de Paulo e abalou sem uma festa no cachorro. Os dois
entreolharam--se: "Então mas não nos pergunta se podemos ficar com o
cão?" E outra vez, com Manuela já fora do ângulo de visão: "Que
estranho. O Ludgero não sai de casa há anos, nunca quer sair." A
surpresa adensou-se ainda mais quando chegaram a casa e abriram o saco:
lá dentro estavam todas as malhas e roupas de Inverno que Manuela
comprara para proteger o Dusty do frio. Mas porquê, se naqueles dias de
Setembro o calor ainda nem dera tréguas? "O melhor", incentivou Paulo,
"é ires lá a casa, Sandra, ver se está tudo bem."
Horas depois,
Sandra bateu à porta de Manuela e Ludgero, com a desculpa de que
faltavam brinquedos para o Dusty. Ludgero, com quem Sandra tinha
frequentes picardias, estava nervoso e saiu a disparar: "Não demores
muito, nem mais um minuto, que o irmão da Manela deve estar aí a
chegar." Manuela estava especialmente fria, de cabeça baixa. Outra
pergunta ríspida de Ludgero, ainda vestido de pijama e roupão: "A minha
mulher pagou-te tudo?" Há uns meses que Sandra fazia limpezas lá em casa
e passava a ferro. Acenou que sim, mas era mentira. Manuela, com receio
de que o marido a castigasse pela má gestão do dinheiro, levantou
ligeiramente os olhos e uniu as mãos como quem diz "Deus te abençoe". Na
sala, entre um sofá e outro, Sandra viu uma mala castanha, de napa, mas
estranhou que estivesse tão mole e pouco recta. Quando chegou a casa
exclamou: "Paulo, tenho a certeza: a mala estava vazia."
Porque estariam a querer afastá-los?
Manuela
e Ludgero, saídos de casamentos despedaçados, conheceram-se em
Odivelas. Uns anos depois de vida em comum, ela perdoou-lhe as noites no
Cais do Sodré, acreditou nas promessas de fidelidade eterna e aceitou
casar-se. Há oito anos decidiram mudar-se para outra freguesia
dormitório e compraram um apartamento ali, em Santo António dos
Cavaleiros, Loures. Consta que Manuela queria fazer obras em casa mas a
tralha que acumulava era tanta que a única solução que encontrou para
não ter de levar tudo para um armazém foi convencer o marido a comprar
uma nova. No prédio de 15 andares e 90 apartamentos, onde pelo menos 180
pessoas entravam e saíam diariamente, poucos sabiam quem eram, de onde
vinham, se tinham ou não familiares. "Isto é um mundo cão, claro que
eles passavam despercebidos", atira uma moradora. Havia até quem não
soubesse os seus nomes, como a vizinha da porta ao lado, que, ao fim do
18.o dia colada à morte, não aguentou mais o odor que dava vómitos e
correu para a esquadra da polícia a pedir ajuda. Já se tinha perguntado
"se o senhor estaria doente", estranhando não o ver da janela, sentado à
mesa da cozinha, a jantar às 18h30 em ponto, como era sagrado. Ou por
que razão, não parando de chover há dias, a janela do quarto continuava
aberta dia e noite.
Lucília, a vizinha do rés-do-chão que todos
tratam por Chila, ainda frequentou a casa do casal e foi companhia no
café, mas já vão longe esses tempos. À medida que Manuela ia ficando
mais em baixo, ia-se afastando, em trajectória inversa às fragilidades
da vizinha do 4.o andar. "Já era doente e comecei a sentir que estava a
viver muito a vida dela." Há anos que Manuela frequentava consultas de
psiquiatria e vivia sob o efeito de antidepressivos, calmantes e
ansiolíticos. Segundo Sandra, terá tentado duas ou três vezes o
suicídio, vezes suficientes para a filha achar que era "egoísta".
"Achava que a tristeza dela devia vir de algum lado. Mas ela não
contava, não se abria. Sugeri que fosse a um psicólogo e ela disse-me:
vou lá contar a minha vida a alguém", lamenta Lucília. Numa das últimas
idas à psiquiatra, Manuela saiu com nova receita: doses cavalares de
Diplexil, Morfex e Diazepam - um antiepiléptico e dois ansiolíticos.
Os
vizinhos recordam-na a cair pelos cantos, a andar de lado, com os
movimentos presos ou arrastando a voz. A perda de equilíbrio provocada
pelos medicamentos chegou mesmo a despertar na vizinhança a tese de que
andaria alcoolizada. Segundo Sandra, Manuela deveria estar a fazer um
tratamento que funciona como uma espécie de semicoma: horas e horas a
dormir. O problema é que não ficava em casa e Ludgero, cansado de a ver
aos caídos, lhe ia cortando a medicação.
A depressão obrigou
Manuela a pôr baixa médica atrás de baixa médica. Forçada a voltar ao
trabalho numa clínica do IPO de Lisboa, não resistiu à sonolência
provocada pelos barbitúricos: à terceira vez que adormeceu ao volante, o
carro foi directo para a sucata. Continuou a trabalhar mas ia de táxi: o
salário nem dava para pagar essa despesa.
A Solidão
À medida que os anos iam passando, eram cada vez menos os que batiam à
porta do 4.oC. Lucília afastou- -se. A filha de Ludgero, que as vizinhas
dizem viver em Inglaterra, nunca ali foi e a filha de Manuela, se foi,
nunca foi vista. Ela, mesmo sob o efeito de sedativos, não dispensava a
ida ao café, ao supermercado e à boutique do bairro: era consumista
compulsiva, a ponto de comprar até o que não lhe servia. O armário era
repetitivo: calças e camisolas largas, acetinadas. Pelos cantos, como
engordara muito com os medicamentos, já só lamentava não encontrar
camisolas de algodão para o seu tamanho. Ele, reformado da banca, há
para aí três ou quatro anos que só era visto à noite, a passear o cão na
praça junto ao prédio. Passava os dias em casa, a grelhar entrecosto
para o jantar - a única refeição que faziam -, ou a ouvir as músicas do
VH1, deitado na cama, cinza do cigarro a cair e a esburacar os lençóis.
Só quando precisava de fazer exames abria uma excepção à clausura. Os
vizinhos suspeitavam que teria um problema nos intestinos, porque andava
amarelo e de barriga inchada. A Sandra e Paulo, os poucos que eram
visita do casal e viam Ludgero correr para a casa de banho oito vezes
numa noite, contaram que os resultados dos exames foram inconclusivos.
Os amigos sugeriram um teste do HIV: nunca chegaram a saber o resultado.
Estavam
sentados numa mesa do café da esquina quando o casal Matias pôs os
olhos neles. Um dia o cão era tema de conversa e de afagos e no outro
estavam a jantar lá em casa. "Eles connosco eram pessoas normais,
estavam felizes", recorda Sandra, há mais de uma hora a chorar
ininterruptamente. O frigorífico e a arca estavam carregados de comida
mas, sempre que eram convidados, o jantar era o mesmo, acabado de
comprar no supermercado: entrecosto grelhado e batatas pré-fritas
congeladas. Manuela dizia que assim era mais rápido, não precisava de
descongelar. Sandra e Paulo já reviravam os olhos ao entrecosto, mas,
como gostavam da companhia, nunca recusaram. Depois do jantar, ficavam
até às 3, 4 da manhã, a falar sobre a vida ou a ter discussões
esotéricas: Ludgero e Manuela acreditavam na vida para além da morte.
Sandra e Paulo eram os companheiros mais improváveis: uns bons 20 ou 25
mais novos, viviam entalados no prédio de habitação social mais
problemático da zona e estavam longe de ter boa fama na vizinhança.
Aparentemente, à superfície, nada havia de semelhante entre um casal e
outro. Apesar disso, nunca ninguém chegou tão próximo.
A queda
Aos poucos, os acontecimentos iam encaminhando o casal para a tragédia.
O primeiro baque veio com a morte da irmã de Manuela, um fim relâmpago
depois da notícia de um cancro da mama. No dia do funeral, concentrou-
-se num só detalhe: depois da doença que a tornara quase irreconhecível
gostara de a ver no caixão "muito compostinha". A filha parecia cada vez
mais distante: numa das últimas idas à clínica onde ambas trabalhavam,
para fazer um exame, Manuela saiu de rastos porque a filha nem sequer se
aproximou. Em Agosto rebentou-lhes um cano na casa de banho. Ela passou
a ir tomar banho a casa de Sandra e Paulo, ele começou a lavar-se com
toalhitas. Nas últimas semanas, tinha chegado à caixa de correio uma
carta da junta de aposentação: há anos que Manuela esperava por aquele
momento, mas agora que ele estava próximo começara a fazer contas. A
ideia de vir a receber ainda menos dinheiro, somada ao corte na reforma
de Ludgero, destruía-a. Pelo meio dos jantares e conversas nocturnas,
iam deixando desabafos: "Quando se acabar o cartão de crédito, não sei
como vai ser."
A mudança nas rotinas de Sandra e Paulo foi o
desastre derradeiro. Sandra arranjou trabalho em Agosto, em Lisboa.
Manuela, mesmo assim, ficava no café à espera dela. Na última semana
Sandra chegou mais tarde por causa de um congresso e Manuela ia-se
arrastando, cada vez mais sozinha, carregando sacos de compras inúteis.
Por dentro, em silêncio, o casal sabia estar mais próximo da morte.
"Sabíamos
que quando fosse iriam os dois", desabafa Sandra. "Sinto-me magoado com
eles. Ficámos a perder em todos os aspectos. Não deviam ter feito isto
connosco", remata Paulo, num misto de revolta e inquietação por não ter
feito mais. Na casa onde jazem sobre o sofá roupas do casal passadas a
ferro, mais dois minutos de silêncio, lágrimas e angústia.
A angústia
É quarta-feira e o casal não regressa nem telefona a avisar que adiou o
retorno, ou a perguntar pelo Dusty. Sandra e Paulo começam a ficar
inquietos: tudo parece confirmar os seus instintos. À noite tentam ligar
para Manuela e Ludgero: os dois telefonemas vão directos para a caixa
de mensagens. Vão ao prédio e falam com a porteira e com Lucília, que
também tenta ligar, mas não consegue. Na sexta ligam pela primeira vez
para a PSP a relatar o desaparecimento. Quem atende dá uma resposta
brusca: "Há algum cheiro no prédio? Vocês nem sequer são família e eles
são maiores e vacinados."
A essa hora, se a morte tiver sido
imediata, já os corpos deitados nos lençóis começavam a entrar em
putrefacção. Mas se a dose de comprimidos tiver sido mais reduzida, o
processo pode ter sido tão lento que naquele momento os corpos ainda
podiam estar em coma e agonia. A morte, dizem os investigadores, não é
um momento, mas um processo.
A partir daquele momento não houve
dia que São, a porteira, não espreitasse pelo buraco da fechadura. Tudo
escuro. Sandra e Paulo ligam de novo para a PSP, que volta a pedir nome,
contacto e morada e promete ligar de volta. Nunca ligaram e o casal
começou a pensar que o problema estava na morada, que remetia para o
prédio problemático em que os bombeiros tinham de transportar macas
pelas escadas até ao 9.o andar porque os elevadores só funcionaram nos
primeiros meses. Também chegaram a ligar para a Polícia Judiciária, que,
depois de repetir as mesmas perguntas, os aconselhou a contactarem a
PSP. Sandra insistia ter indícios de que o desaparecimento tinha sido
planeado. Nada aconteceu.
Só quando o calor voltou, depois de uma
semana de chuvas e temperaturas frias, um ligeiro cheiro a podre se
infiltrou no prédio. As moscas varejeiras, que as superstições associam à
chegada de uma carta ou de uma novidade, começavam a rondar o edifício.
As vizinhas subiam e desciam vários andares para espreitaram o
apartamento de vários ângulos, com olhar de corujas. Até que a do 6.o
andar teve uma ideia: amarrou a trela da cadela a um espelho e fê-lo
descer lentamente até à janela do quarto do casal. Quando o objecto
tocou no cortinado salmão que há duas semanas baloiçava, do lado de
fora, para cá e para lá, um enxame de varejeiras saiu do quarto e um
cheiro agoniante começou a subir. De lá de dentro não conseguiram ver
nada.
Na quarta-feira, 18 dias depois da última vez que tinham
sido vistos, São anda pelos corredores a limpar o prédio e com vontade
de vomitar. A vizinha do lado também já não aguenta e corre para a PSP:
tinham de ir lá, já.
A essa hora, os tecidos estavam em total
decomposição. A pele enchera-se de bolhas e rebentara com a pressão dos
gases, que libertam uma mistura nauseabunda de gás sulfídrico, metano e
amónio. Um elemento da PSP quebra o silêncio para fazer uma só pergunta
às vizinhas: "Eram brancos ou pretos?" As bactérias famintas deixam os
cadáveres irreconhecíveis.
O fim
O que tinha acontecido no 4.oC do prédio de 90 apartamentos? Uma equipa
conjunta da brigada de homicídios e da polícia científica ainda estava
no terreno a investigar e já a vizinhança encontrava as suas respostas.
Manuela
e Ludgero sabiam que iriam morrer e planearam-no com minúcia e
requinte. Não foi só o cão que foi entregue para que não morresse,
também ele, à fome e à sede. Os telefones foram desligados, a viagem foi
encenada, a mala, deixada na sala, estaria de facto vazia. Na
mesa-de-cabeceira, ao lado da cama, uma carteira guardava todos os
documentos de identificação e cartões bancários.
Mas como poderia
Manuela estar tão calma e silenciosa antes de morrer? Teria sido um
plano a dois ou Ludgero, um homem "à antiga", "azedo" e com um grande
ascendente sobre ela, tê-la-á convencido prometendo-lhe um futuro novo e
mais feliz? Que desgraça determinou que aquele seria o momento?
Os
investigadores não suspeitam de outra hipótese que não um duplo
suicídio. Não havia indícios de confronto, desalinho ou desarrumação. Os
corpos contam que terão morrido em horas próximas, mas quem morreu
primeiro, ou como tudo se precipitou, ali ficará enterrado, num sigilo
que as paredes não irão violar.
No café mais próximo suspira-se e
murmura-se: "Ninguém devia morrer sozinho." Manuela e Ludgero não o
quiseram. À hora que tinham planeado, àquela hora em ponto, depois do
último cigarro, fumado ali mesmo, na cama, engoliram com a ajuda de um
copo de água uma dose brutal de comprimidos. Terão passado dias, talvez
meses, a planear aquele momento. Não haveria mais depressão, nem dores,
nem doenças, nem famílias ausentes, nem solidão.
Terá sido
Ludgero, que deixara escapar em conversa com Sandra já ter experimentado
os comprimidos da mulher, a estudar a dose certa para não falhar.
Manuela planeara tudo para que pudessem ser encontrados quatro dias
depois, dia em que voltariam da tal viagem, ainda a tempo de ser
enterrada "compostinha", como gostara de ver a irmã na hora da morte.
Aqui o plano falhou.
A janela continua aberta, com o cortinado do
lado de fora. A caixa de correio está a abarrotar, com publicidade,
cartas do hospital para ela e da União de Créditos Bancários para ele.
As luzes, que tinham ficado acesas depois da visita dos inspectores,
foram finalmente desligadas porque um irmão de Manuela se encarregou de
desligar o quadro, do lado de fora do apartamento. Lá dentro, nunca mais
ninguém entrou.
Manuela e Ludgero fechavam sempre a porta por
dentro, mesmo quando estavam em casa. No dia em que a polícia chegou
estava apenas no trinco.